quinta-feira, 29 de maio de 2014

Livro Lucíola

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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
LUCÍOLA
José de Alencar
I
A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva indulgência
pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e
extravagâncias.
Quis responder-lhe imediatamente, tanto é o apreço em que tenho o tato sutil e esquisito da
mulher superior para julgar de uma questão de sentimento. Não o fiz, porque vi sentada no sofá, do
outro lado do salão, sua neta, gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha à
sombra materna. Embora não pudesse ouvir-nos, a minha história seria uma profanação na
atmosfera que ela purificava com os perfumes da sua inocência; e — quem sabe? — talvez por
ignota repercussão o melindre de seu pudor se arrufasse unicamente com os palpites de emoções
que iam acordar em minha alma.
Receei também que a palavra viva, rápida e impressionável não pudesse, como a pena calma
e refletida, perscrutar os mistérios que desejava desvendar-lhe, sem romper alguns fios da tênue
gaza com que a fina educação envolve certas idéias, como envolve a moda em rendas e tecidos
diáfanos os mais sedutores encantos da mulher. Vê-se tudo; mas furta-se aos olhos a indecente
nudez.
Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão que a senhora exigia; e cumpro o meu
propósito mais cedo do que pensava. Trouxe no desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando
a insônia de recordações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, as quais
a senhora dará um título e o destino que merecerem. É um perfil de mulher apenas esboçado.
Desculpe, se alguma vez a fizer corar sob os seus cabelos brancos, pura e santa coroa de
uma virtude que eu respeito. O rubor vexa em face de um homem; mas em face do papel, muda e
impassível testemunha, ele deve ser para aquelas que já imolaram à velhice os últimos desejos, uma
como essência de gozos extintos, ou extremo perfume que deixam nos espinhos as desfolhadas
rosas.
De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz projete claros e escuros. Às
sombras do meu quadro se esfumam traços carregados, contrastam debuxando o relevo colorido de
límpidos contornos.
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II
A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855.
Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e companheiro de infância, o Dr. Sá,
levou-me à festa da Glória; uma das poucas festas populares da corte. Conforme o costume, a
grande romaria desfilando pela Rua da Lapa e ao longo do cais, serpejava nas faldas do outeiro e
apinhava-se em torno da poética ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão do povo.
Era ave-maria quando chegamos ao adro; perdida a esperança de romper a mole de gente
que murava cada uma das portas da igreja, nos resignamos a gozar da fresca viração que vinha do
mar, contemplando o delicioso panorama da baía e admirando ou criticando as devotas que também
tinham chegado tarde e pareciam satisfeitas com a exibição de seus adornos.
Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e conhecidos, gozava eu da minha
tranqüila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre a pequena muralha e resolvido a
estabelecer ali o meu observatório. Para um provinciano recém-chegado à corte, que melhor festa
do que ver passar-lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da população desta grande cidade,
com os seus vários matizes e infinitas gradações?
Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; todas as posições, desde
as ilustrações da política, da fortuna ou do talento, até o proletário humilde e desconhecido; todas as
profissões, desde o banqueiro até o mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade
brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim, roçando a seda e
a casimira pela baeta ou pelo algodão, misturando os perfumes delicados às impuras exalações, o
fumo aromático do havana às acres baforadas do cigarro de palha.
— É uma festa filosófica essa festa da Glória! Aprendi mais naquela meia hora de
observação do que nos cinco anos que acabava de esperdiçar em Olinda com uma prodigalidade
verdadeiramente brasileira.
A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a
alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as
nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe
esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho
e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao
menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce
melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno
na mimosa aparição.
— Já vi esta moça! disse comigo. Mas onde?...
Ela pouco demorou-se na sua graciosa imobilidade e continuou lentamente o passeio
interrompido. Meu companheiro cumprimentou-a com um gesto familiar; eu, com respeitosa
cortesia, que me foi retribuída por uma imperceptível inclinação da fronte.
— Quem é esta senhora? perguntei a Sá.
A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que
desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades
sociais.
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— Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la ?. . .
Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita
do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a
ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.
Depois de algumas voltas descobrimos ao longe a ondulação do seu vestido, e fomos
encontrá-la, retirada a um canto, distribuindo algumas pequenas moedas de prata à multidão de
pobres que a cercava. Voltou-se confusa ouvindo Sá pronunciar o seu nome:
— Lúcia!
— Não há modos de livrar-se uma pessoa desta gente! São de uma impertinência! disse ela
mostrando os pobres e esquivando-se aos seus agradecimentos.
Feita a apresentação no tom desdenhoso e altivo com que um moço distinto se dirige a essas
sultanas do ouro, e trocadas algumas palavras triviais, meu amigo perguntou-lhe:
— Vieste só?
— Em corpo e alma.
— E não tens companhia para a volta?
Ela fez um gesto negativo.
— Neste caso ofereço-te a minha, ou antes a nossa.
— Em qualquer outra ocasião aceitaria com muito prazer; hoje não posso.
— Já vejo que não foste franca!
— Não acredita?... Se eu viesse por passeio!
— E qual é o outro motivo que te pode trazer à festa da Glória?
— A senhora veio talvez por devoção? disse eu.
— A Lúcia devota!... Bem se vê que a não conheces.
— Um dia no ano não é muito! respondeu ela sorrindo.
— É sempre alguma coisa, repliquei.
Sá insistiu:
— Deixa-te disso; vem conosco.
— O senhor sabe que não é preciso rogar-me quando se trata de me divertir. Amanhã,
qualquer dia, estou pronta. Esta noite, não!
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— Decididamente há alguém que te espera.
— Ora! Faço mistério disto?
— Não é teu costume decerto.
— Portanto tenho o direito de ser acreditada. As aparências enganam tantas vezes! Não é
verdade? disse voltando-se para mim com um sorriso.
Não me lembra o que lhe respondi; alguma palavra que nada exprimia, dessas que se
pronunciam às vezes para ter o ar de dizer alguma coisa. Quanto a Lúcia, fazendo-nos um ligeiro
aceno com o leque, aproveitou uma aberta da multidão e penetrou no interior da igreja, em risco de
ser esmagada pelo povo.
Não preciso dizer-lhe, pois adivinha, que acabava de fazer uma triste figura. Não sou tímido;
ao contrário peco por desembaraçado. Mas nessa ocasião diversas circunstâncias me tiravam do
meu natural. A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os
lábios dessa mulher revelavam a cortesã franca e impudente; o contraste inexplicável da palavra e
da fisionomia, junto à vaga reminiscência do meu espírito, me preocupavam sem querer. Atribuo a
isto ter eu apenas balbuciado algumas palavras durante a conversa, e haver cortejado
respeitosamente a senhora, que apesar de tudo ainda me aparecia nesta mulher, mal a voz lhe
expirava nos lábios, porque, então, o desdém que vertia de sua frase volúbil passava, e o semblante
em repouso tomava uns ares de meiga distinção.
A festa continuou, e fomos acabá-la em uma alegre reunião, onde se dançou e brincou até
duas horas da noite.
Quando apaguei a minha vela ao deitar-me, na dúbia visão que oscila entre o sono e a
vigília, foi que desenhou-se no meu espírito em viva cor a reminiscência que despertara em mim o
encontro de Lúcia. Lembrei-me então perfeitamente quando e como a vira a primeira vez.
Fora no dia da minha chegada. Jantara com um companheiro de viagem, e ávidos ambos de
conhecer a corte, saímos de braço dado a percorrer a cidade. Íamos, se não me engano, pela Rua das
Mangueiras, quando, voltando-nos, vimos um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos
cavalos. Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se recostava
preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender pela cobertura derreada do carro a mão
pequena que brincava com um leque de penas escarlates. Havia nessa atitude cheia de abandono
muita graça; mas graça simples, correta e harmoniosa; não desgarro com ares altivos, decididos, que
afetam certas mulheres à moda.
No momento em que passava o carro diante de nós, vendo o perfil suave e delicado que
iluminava a aurora de um sorriso raiando apenas no lábio mimoso, e a fronte límpida que à sombra
dos cabelos negros brilhava de viço e juventude, não me pude conter de admiração.
Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem tinha-me saturado da poesia do mar,
que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara a solidão profunda do oceano, naquelas
compridas noites veladas ao relento, de sonhos dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a sede
da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte anos, sob o céu azul da
corte.
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Recebi pois essa primeira impressão com verdadeiro entusiasmo, e a minha voz habituada às
fortes vibrações nas conversas à tolda do vapor, quando zunia pelas enxárcias a fresca viração,
minha voz excedeu-se:
— Que linda menina! exclamei para meu companheiro, que também admirava. Como deve
ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!
Um embaraço imprevisto, causado por duas gôndolas, tinha feito parar o carro. A moça
ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça para olhar-me, e sorriu. Qual é a mulher bonita que não
sorri a um elogio espontâneo e a um grito ingênuo de admiração? Se não sorri nos lábios, sorri no
coração.
Durante que se desimpedia o caminho, tínhamos parado para melhor admirá-la; e então
ainda mais notei a serenidade de seu olhar que nos procurava com ingênua curiosidade, sem
provocação e sem vaidade. O carro partiu; porém tão de repente e com tal ímpeto dos cavalos por
algum tempo sofreados, que a moça assustou-se e deixou cair o leque. Apressei-me, e tive o prazer
de o restituir inteiro.
Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe a ponta dos dedos presos na lava de pelica. Bem
vê que tive razão assegurando-lhe que não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; agradeceu-me
com um segundo sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso desta vez foi tão
melancólico, que me fez dizer ao meu companheiro:
— Esta moça não é feliz!
— Não sei; mas o homem a quem ela amar deve ser bem feliz!
Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes parasitas
que pendem dos ramos das árvores, abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a linda flor,
em vez da suave fragrância que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu,
não a atirou com desprezo para longe de si?
É o que se passava em mim quando essas primeiras recordações roçaram a face da Lúcia que
eu encontrara na Glória. Voltei-me no leito para fugir à sua imagem, e dormi.
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III
A corte tem mil seduções que arrebatam um provinciano aos seus hábitos, e o atordoam e
preocupam tanto, que só ao cabo de algum tempo o restituem à posse de si mesmo e ao livre uso de
sua pessoa.
Assim me aconteceu. Reuniões, teatros, apresentações às notabilidades políticas, literárias e
financeiras de um e outro sexo; passeios aos arrabaldes; visitas de cerimônia e jantares obrigados;
tudo isto encheu o primeiro mês de minha estada no Rio de Janeiro. Depois desse tributo pago à
novidade, conquistei os foros de cortesão e o direito de aborrecer-me à vontade.
Uma bela manhã, pois, estava na crítica posição de um homem que não sabe o que fazer. Li
os anúncios dos jornais; escrevi à minha família; participei a minha chegada aos amigos; e por fim
ainda me achei com uma sobra de tempo que embaraçava-me realmente. Acendi o charuto; e ao
través da fumaça azulada, lancei uma vista pelos dias decorridos. «Lembrar-se é viver outra vez»,
diz o poeta.
De repente caiu-me um nome da memória. Achara em que empregar a manhã.
— Vou ver a Lúcia.
Depois da festa da Glória tinha-a encontrado algumas vezes, mas sem lhe falar. Lembro-me
de uma manhã em casa do Desmarais. Lúcia passava, parou na vidraça e entrou para comprar
algumas perfumarias; o seu vestido roçara por mim; mas ela não me olhou, nem pareceu ter-me
visto. Essa circunstância, e talvez um resquício do desgosto que deixara a minha decepção,
tiraram-me a vontade de a cumprimentar; contudo conservei o chapéu na mão todo tempo que
esteve na loja. Quando escolhia alguns vidros de extratos, mostraram-lhe um que ela repeliu com
um gesto vivo e um sorriso irônico:
— Flor de laranja!... É muito puro para mim!
Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto a
mão ligeira roçagava os amplos folhos da seda que rugia arrastando. Esse movimento podia ser uma
profunda cortesia disfarçada com certo acanhamento; e podia não passar de um gesto habitual de
faceirice feminina.
Outra vez estava no teatro; tinha ido fazer minha visita a um camarote durante o último
intervalo, e conversando reparei na insistência com que me examinava um binóculo da segunda
ordem. Da pessoa que o fitava só via a mão pequena e a fronte pura, que denunciavam uma mulher.
Depois, ao levantar o pano, vi Lúcia naquela direção, e pareceu-me reconhecer nela a indiscreta
luva cor de pérola e o curioso instrumento que me perseguira com o seu exame.
Eis quais eram as minhas relações com essa moça; e confesso que vestindo-me sentia
algumas apreensões sobre a recepção que me esperava; não há nada que mais vexe do que a posição
de um homem solicitando da memória rebelde da pessoa a quem se dirige um reconhecimento
tardio.
Não obstante, poucos minutos depois subia as escadas de Lúcia, e entrava numa bela sala
decorada e mobiliada com mais elegância do que riqueza. Ela mostrou não me reconhecer
imediatamente; mas apenas falei-lhe do nosso primeiro encontro na Rua das Mangueiras, sorriu e
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fez-me o mais amável acolhimento. Conversamos muito tempo sobre mil futilidades, que nos
ocorreram; e eu tive ocasião de notar a simplicidade e a graça natural com que se exprimia.
O que porém continuava a surpreender-me ao último ponto, era o casto e ingênuo perfume
que respirava de toda a sua pessoa. Uma ocasião, sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu
roupão azul abriu-se com um movimento involuntário, deixando ver o contorno nascente de um seio
branco e puro, que o meu olhar ávido devorou com ardente voluptuosidade. Acompanhando a
direção desse olhar, ela enrubesceu como uma menina e fechou o roupão; mas doce e brandamente,
sem nenhuma afetação pretensiosa.
Tal é a força mística do pudor, que o homem o mais ousado, desde que tem no coração o
instinto da delicadeza, não se anima a amarrotar bruscamente esse véu sutil que resguarda a
fraqueza da mulher. Se a resistência irrita-lhe o desejo, o enleio casto, a leve rubescência que veste
a beleza como de um santo esplendor, influem mágico respeito. Isto, quando se ama; quando a
atração irresistível da alma emudece os escrúpulos e as suscetibilidades. O que não será pois quando
apenas um desejo ou um capricho passageiro nos excita? Então, ousar é mais do que uma ofensa; é
um insulto cruel.
Se eu amasse essa mulher, que via pela terceira ou quarta vez, teria certamente a coragem de
falar-lhe do que sentia; se quisesse fingir um amor degradante, acharia força para mentir; mas tinha
apenas sede de prazer; fazia dessa moça uma idéia talvez falsa; e receava seriamente que uma frase
minha lhe doesse tanto mais, quanto ela não tinha nem o direito de indignar-se, nem o consolo que
deve dar a consciência de uma virtude rígida.
Quando me lembrava das palavras que lhe tinha ouvido na Glória, do modo por que Sá a
tratara e de outras circunstâncias, como do seu isolamento a par do luxo que ostentava, tudo me
parecia claro; mas se me voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes
de melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto quase infantil, o sorriso
meigo e a atitude singela e modesta, o meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava
de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra.
E continuávamos a conversar tranqüilamente de mil coisas, menos daquela que me tinha
levado à sua casa. Não posso repetir-lhe todo esse longo diálogo; mal conseguirei recompor com as
minhas lembranças algum fragmento dele.
— Há muito tempo que está no Rio de Janeiro? perguntou-me Lúcia depois de uma pausa.
— Há pouco mais de um mês. Cheguei justamente no dia em que a encontrei pela primeira
vez.
— Ah! no mesmo dia?...
Acabava de desembarcar.
— Mas naquela tarde, lembro-me... o senhor estava fumando. Se quer, pode acender o seu
charuto; não me incomoda.
Recusei por delicadeza.
— Veio passear? Demora-se pouco naturalmente.
— Vim ver a corte; e depois talvez me resolva a ficar.
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— De uma vez?
— Se achar meio de estabelecer-me. Sou pobre; preciso fazer uma carreira; e a corte
oferece-me outros recursos, que não encontro em Pernambuco.
— Ah! é filho de Pernambuco?... Que bonita cidade que é o Recife! Como são lindos
aqueles arrabaldes da Madalena, da Ponta do Uchoa e da Soledade!...
— Já esteve no Recife! Em que época?
— Fazem dois anos.
— Em 1853... Devo tê-la visto alguma vez! Nesse tempo era eu estudante e conhecia todas
as moças bonitas da cidade.
— Então já vê que não me podia conhecer! Demais, estive apenas uma tarde. O vapor pouco
se demorou.
— Donde vinha?
— Da Europa. Apenas desembarquei, meti-me num carro, e fui passear. Vinte dias
embarcada! Sabe o que é isto? Tinha saudade das árvores e dos campos de minha terra, que eu não
via há oito meses! Que passeios encantadores por aquelas quintas cobertas de mangueiras, que
bordam as margens do rio! Havia uma sobretudo na Soledade, que me encantou: era uma casinha
muito alva que aparecia no fundo de uma rua de arvoredo sombrio; mas tudo tão gracioso, tão bem
arranjado que parecia uma pintura. Duas senhoras, uma já de idade, que me pareceu a mãe, e outra
ainda mocinha e muito bonita, passeavam pela quinta colhendo flores e frutas. Mandei parar o
carro, e fiquei olhando com inveja para a casa e as duas senhoras, pensando na vida tranqüila e
sossegada que se devia viver naquele retiro.
— A senhora me faz saudades de minha terra. Lembrei-me de minha casa, e das tardes em
que passeava assim por aqueles sítios com minha mãe e minha irmã.
— O senhor tem mãe e irmã! Como deve ser feliz! disse Lúcia com sentimento.
— Quem é que não tem uma irmã! respondi-lhe sorrindo. E minha mãe ainda é muito moça
para que eu tivesse a desgraça de a haver perdido.
— Perdi a minha muito cedo e fiquei só no mundo; por isso invejo a felicidade daqueles que
têm uma família. Há de ser tão bom a gente sentir-se amada sem interesse!
Depois de uma hora de conversa despedi-me, e voltei sem ter arriscado um gesto ou uma
palavra duvidosa.
— Já vai? disse Lúcia vendo-me tomar o chapéu.
— Não posso demorar-me mais tempo. Se a minha visita não lhe aborrece, voltarei outro
dia.
— Deu-me tanto prazer! Até amanhã; sim?
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E apertou-me a mão cordialmente.
Na rua achei-me tão ridículo com os meus vinte e cinco anos e os meus escrúpulos
extravagantes, que estive para voltar. Como podia eu temer um engano, depois do que sabia dessa
mulher?
Encontrei-me à tarde com Sá no Hotel da Europa, onde costumava jantar. Estava ainda
muito viva a lembrança do que me sucedera naquela manhã para não aproveitar a ocasião de
falar-lhe a respeito, tendo porém o cuidado de ocultar o papel que havia representado na pequena
comédia.
— Tens visto a Lúcia? perguntei-lhe.
— Não; há muito tempo que não a encontro.
— Tu a conheces bem, Sá?
— Ora! Intimamente!
— Tens toda a certeza de que ela seja o que me disseste na Glória?
— E esta! Pois duvidas?... Vá à casa dela; já te apresentei.
— Supunha que fosse apenas uma dessas moças fáceis, a quem contudo é preciso fazer a
corte por algum tempo.
— O tempo de abrir a carteira. Andas no mundo da lua, Paulo. Queres saber como se faz a
corte à Lúcia?... Dando-lhe uma pulseira de brilhante, ou abrindo-lhe um crédito no Wallerstein.
— Não é sem razão que te pergunto isto; encontrei-a há dias, e a sua conversa, os seus
modos, pareceram-me tão sérios!
— Por que lhe falaste nesse tom? Naturalmente a trataste por senhora como da primeira vez;
e lhe fizeste duas ou três barretadas. Essas borboletas são como as outras, Paulo; quando lhes dão
asas, voam, e é bem difícil então apanhá-las. O verdadeiro, acredita-me, é deixá-las arrastarem-se
pelo chão no estado de larvas. A Lúcia é a mais alegre companheira que pode haver para uma noite,
ou mesmo alguns dias de extravagância.
Acabamos de jantar e não tocamos mais no assunto.
— Tens que fazer sábado depois do teatro? perguntou-me Sá com um sorriso maligno.
— Nada, senão dormir.
— Pois vá cear comigo. Dormirás durante o dia. Asseguro-te que não perderás o teu tempo.
— Até sábado, então.
Esta conversa desgostou-me; porque me fez parecer ainda mais ridículo aos meus olhos.
Tinha uma vaga desconfiança, pelo tom do convite, de que Lúcia iria à casa do Sá; e
protestei que antes disso me reabilitaria de minha estúrdia ingenuidade.
10
IV
No dia seguinte à mesma hora voltei à casa de Lúcia; achei-a ao piano.
— O que estava tocando?
— Nem sei!... Uma valsa que aprendi de ouvido.
— Continue!
— Não sei tocar, não! Estava brincando; não tinha que fazer. — Como passou de ontem?
— Bem, obrigado. Já vê que a minha segunda visita não se demorou muito.
— Ainda assim não compensa a demora da primeira.
— Sentiu essa demora?... Qual! ontem nem me conheceu.
— Tanto como na Glória. Ainda que se tivessem passado anos, creio que em qualquer parte
onde me encontrasse com o senhor, o reconheceria.
— Por que motivo então fingiu ontem não se lembrar de mim, logo que entrei?
— Por quê?... Queria ver uma coisa.
— E não se pode saber o que era?
— Não é preciso!
— Há de me dizer!...
E tomei-lhe as mãos que estavam frias e trêmulas.
— Pois bem, eu lhe digo. Queria ver se ainda se lembrava do nosso primeiro encontro,
respondeu ela furtando o corpo ao meu abraço.
— Duvidava?... Não tinha razão; talvez fosse eu o que melhor guardasse essa lembrança.
Lúcia abanou a cabeça lentamente:
— Que vestido levava eu naquela tarde? perguntou sorrindo.
A pergunta embaraçou-me. Quando admiro uma mulher bonita, a impressão que ela produz
em mim não me deixa ver mais que a sua beleza.
— Nem se recorda!
— É um defeito meu. Não reparo na toilette das moças bonitas pela mesma razão por que
não se repara na moldura de um belo quadro.
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— Que desculpa!... E eu por que reparei no seu traje, na cor de sua sobrecasaca, em tudo;
até na sua bengala? Não é esta; a outra era mais bonita; tinha o castão de marfim. Está vendo que
me lembro perfeitamente, e entretanto não tenho esses objetos diante dos olhos!
— Ah! É este o vestido?
— O vestido, as jóias, o penteado, o leque, aquele que o senhor apanhou. Nem desse se
lembrava! Só falta o chapéu! Quer vê-lo?
Lúcia saiu um instante e voltou. Ou porque a minha memória se avivasse, ou porque a
ausência desse gentil chapéu, que parecia fugir-lhe da cabeça, tão de leve a cingia, mutilasse a
graciosa imagem que eu vira na tarde de minha chegada; o fato é que a aparição já desvanecida
surgira de repente aos meus olhos.
— Agora lembro-me! Estou vendo-a como a vi da primeira vez!
— Como daquela vez não me verá mais nunca!
— O que lhe falta?
— Falta o que o senhor pensava e não tornará a pensar! disse ela com a voz pungida por dor
íntima!
Não compreendi então aquelas palavras, nem o tom com que foram proferidas; procurei-lhes
o sentido, acompanhando com os olhos a Lúcia que tirava lentamente o chapéu, e fitava na sua
imagem refletida pelo espelho um triste olhar.
— Ah! já sei! O que eu pensava?... Mas ainda penso: acho-a hoje tão bonita ou mais do que
naquela tarde.
— Não é isto!
— O que é então? Venha dizer-me.
Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus
lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam
nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com o meu primeiro movimento,
Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida
resignação.
Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as formas
encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As
palpitações eram bruscas e precípites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu
roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça
expirando, pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam.
É o coração, quando fortemente confrangido por violenta emoção, que espreme esse soro do
sangue que gela e coalha.
Pungiu-me aquela aflição.
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Retirei vivamente o braço; enquanto Lúcia sentava-se trêmula, afastei-me revoltado contra
mim, e ao mesmo tempo indignado contra essa mulher que zombava da minha credulidade, e contra
Sá que me iludira. Não sabia o que pensar; para fugir a uma posição que me incomodava
horrivelmente, fui debruçar-me na janela.
Um instante depois ouvi sua voz doce e carinhosa:
— Não se agaste comigo!
Voltei-me; ela sorriu a dois passos de mim, e com uma expressão suplicante, como de quem
pedisse perdão.
— Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te desagrado por qualquer
motivo, dize francamente, que eu tomo o meu chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que
valho tanto como os outros, não percas o tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor pode
divertir os mocinhos de 18 anos e os velhos de 50; mas afianço-te que não lhe acho a menor graça.
— Não seja tão injusto! Em que lhe pareço fingida? Já me perguntou alguma coisa que eu
lhe negasse? Já me recusei a um pedido seu?
— Entretanto te ofendeste com uma simples carícia!
— Não me ofendi; e a prova é que não dei sinal de desagrado, nem conservo o menor
ressentimento. Não me conhece!... Sei o que valho, e não sou capaz de iludir a ninguém, muito
menos ao senhor.
— Mas, há pouco, o que significavam essas lágrimas?
— Ah, não repare! Sofro do coração; às vezes sobe-me o sangue à cabeça, fico muito pálida,
e sinto uma dor aguda que me arranca lágrimas dos olhos!... Não é nada; passa-me logo. Já passou!
concluiu com um sorriso dorido.
— É diferente; desculpa. Incomodava-me essa idéia de pensares que estava disposto a
fazer-te a corte. Seria soberanamente ridículo para nós ambos.
— Decerto!
Lúcia acompanhou estas duas palavras com um riso estridente e um olhar que ainda vejo
brilhar nas sombras de minhas recordações: olhar vivo e cintilante, que luziu como as chispas do
brilhante ferido pela réstia da luz, e veio bater-me em cheio na face, cobrindo-me com o mais agro
desprezo que pode estilar um coração de mulher.
Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de
seda, desvendou de relance uma alcova elegante e primorosamente ornada. Então voltou-se para
mim com o riso nos lábios, e de um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.
A luz, que golfava em cascatas pelas janelas abertas sobre um terraço cercado de altos
muros, enchia o aposento, dourando o lustro dos móveis de pau-cetim, ou realçando a alvura
deslumbrante das cortinas e roupagens de um leito gracioso. Não se respiravam nessas aras sagradas
à volúpia, outros perfumes senão o aroma que exalavam as flores naturais dos vasos de porcelana
colocados sobre o mármore dos consolos, e as ondas de suave fragrância que deixava na sua
passagem a deusa do templo.
13
Lúcia não disse mais palavra; parou no meio do aposento, defronte de mim.
Era outra mulher.
O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se
transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava.
Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de
sensualidade nas asas transparentes das narinas que tremiam com o anélito do respiro curto e
sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra.
À suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia dos movimentos. O talhe
perdera a ligeira flexão que de ordinário o curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; e
agora arqueava enfunando a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num
espreguiçamento voluptuoso. Às vezes um tremor espasmódico percorria-lhe todo o corpo, e as
espáduas se conchegavam como se um frio de gelo a invadira de súbito; mas breve sucedia a reação,
e o sangue abrasando-lhe as veias, dava à branca epiderme reflexos de nácar e às formas uma
exuberância de seiva e de vida, que realçavam a radiante beleza.
Era uma transfiguração completa.
Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis
laços que prendiam-lhe as vestes. À mais leve resistência dobrava-se sobre si mesma como uma
cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe
opunha obstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares, as tranças luxuriosas dos
cabelos negros rolaram pelos ombros arrufando ao contato da pele melindrosa, uma nuvem de
rendas e cambraias abateu-se a seus pés, e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em
ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora
com o pé lascivo as uvas de Corinto.
Saí alucinado!
Fora delírio, convulsão de prazer tão viva que, através do imenso deleite, traspassava-me
uma sensação dolorosa, como se eu me revolvera no meio de um sono opiado, sobre um leito de
espinhos. É que as carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma irritabilidade que cauterizava.
Há mulheres gastas, máquinas do prazer que vendem, autômatos só movidos por molas de
ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras
pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou
asfixiar-me com seus beijos.
De repente surgiu lívida, e estendeu-me a mão aberta. Ouvi uma palavra soluçada, voz
opressa, que não entendi, mas adivinhei.
Imagine qual revolução houve em mim; e a profunda indignação com que me precipitei
sobre minha carteira para atirá-la à face dessa mulher. Mas ela reteve-me com a força sobre-humana
que lhe davam as contrações nervosas.
— Estava gracejando! Não é assim que me queria?
E soltou uma gargalhada.
14
Debalde pedi uma explicação. Ao delírio sucedera prostração absoluta, orgasmo da
constituição violentamente abalada. Vendo então esse corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e
as mãos crispadas, tive dó e como um pressentimento de que a vida o abandonaria breve.
Quando lho dei a perceber, ela respondeu-me:
— Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve a velhice às
mulheres como eu?
Ao retirar-me ia pela segunda vez levar a mão à carteira, quando o olhar de Lúcia correu-me
de vergonha. Entretanto ela, abatida ainda, porém calma, apertava-me a mão por despedida. Que
magia tinham aqueles olhos fúlgidos, quando um sentimento forte lhes toldava a doce serenidade!
Conto-lhe estes fatos, como se escrevesse no dia em que eles sucederam, ignorando o seu
futuro; entretanto, talvez que, apesar disto, compreenda as palavras equívocas e as causas ocultas
que naquela ocasião resistiram à minha perspicácia.
Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta, quando se quer, a página já lida,
para melhor entendê-la; nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos
tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho
percorrido.
Assim o meu espírito preocupou-se um momento com a singularidade daquela cortesã, que
ora levava a impudência até o cinismo, ora esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de
uma senhora; porém vieram logo outros pensamentos distrair-me.
15
V
As grandes sensações de dor ou de prazer pesam tanto sobre o homem, que o esmagam no
primeiro momento e paralisam as forças vitais. É depois que passa esse entorpecimento das
faculdades, que o espírito, insigne químico, decompõe a miríada de sensações, e vai sugando a gota
de fel ou de essência que ainda estila dos favos apenas libados.
Foi o que me sucedeu; e não sei se no dia seguinte trocaria a voluptuosidade lenta e infinita
de minhas recordações ainda recentes por outra hora da febre ardente que na véspera me prostrara
nos braços de Lúcia. Mas então não me lembrava que vendo-a, todos os meus desejos, que eu
supunha extenuados, iam acordar de novo, tigres famintos da presa em que uma vez se tinham
cevado.
Estava no teatro lírico, onde o acaso me colocara junto de um moço com quem havia feito
conhecimento na sociedade e cujo nome não me acode agora. Em falta de outro, lhe darei o de
Cunha.
Esperando que se levantasse o pano, corríamos ambos com o binóculo as ordens de
camarotes, que se começavam a encher. É um regalo semelhante ao do gastrônomo, que antes de
sentar-se à mesa belisca as iguarias que vão se ostentando aos olhos gulosos. A comparação me
agrada; porque realmente nunca senti essa gula de olhar que devora com uma fome canina, como
quando contemplava uma multidão de mulheres bonitas. Cada uma delas me emprestava uma forma
sedutora, um encanto, um contorno para a estátua ideal que a imaginação moldava, aperfeiçoando a
capricho.
À medida que fazíamos alguma descoberta astronômica, ou na região dos planetas de
primeira e segunda ordem, ou entre as nebulosas da última esfera, comunicávamos ao companheiro,
que imediatamente assestava o telescópio. Começavam então as competentes observações sobre o
astro. Já tínhamos examinado algumas constelações ou grupos de estrelas brilhantes e dois ou três
planetas superiores, discorrendo Cunha sobre a sua órbita, os seus satélites e o ponto da elíptica em
que se achavam. Tínhamos lobrigado no fundo de um camarote a cauda luminosa de um cometa;
finalmente estudávamos um aerólito ou estrela cadente, conjeturando sobre as causas prováveis do
fenômeno atmosférico-financeiro.
— Aí está a Lúcia, disse Cunha. Na segunda ordem, quarto camarote depois de vésper.
Assim havíamos batizado um planeta que se recolhia infalivelmente entre nove e dez horas
da noite.
Esqueci-me dizer que a ópera começara; as nossas observações podiam fazer-se então em
céu desnublado. Vi Lúcia sentada na frente do seu camarote, vestida com certa galantaria, mas sem
a profusão de adornos e a exuberância de luxo que ostentam de ordinário as cortesãs, ou porque
acreditem que a sua beleza, como as caixinhas de amêndoas, cota-se pelo invólucro dourado, ou
porque no seu orgulho de anjos decaídos desejem esmagar a casta simplicidade da mulher honesta,
quantas vezes defraudada nessa prodigalidade.
Não me posso agora recordar das minúcias do traje de Lúcia naquela noite. O que ainda
vejo neste momento, se fecho os olhos, são as nuvens brancas e nítidas, que se frocavam
graciosamente, aflando com o lento movimento de seu leque; o mesmo leque de penas que eu
apanhara, e que de longe parecia uma grande borboleta rubra pairando no cálice das magnólias. O
rosto suave e harmonioso, o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite,
que ondeava sobre formas divinas.
16
A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase tímida,
e a singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia
influir pensamentos calmos, senão puros. Entretanto o meu olhar ávido e acerado rasgava os véus
ligeiros e desnudava as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob meus lábios. As sensações
amortecidas se encarnavam de novo e pulsavam com uma veemência extraordinária. Eu sofria a
atração irresistível do gozo fruído, que provoca o desejo até a consunção; e conheci que essa mulher
ia se tornar uma necessidade, embora momentânea, da minha vida.
— É uma bonita mulher! disse ao meu vizinho, com um ar de indiferença para disfarçar a
minha emoção.
— A mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a mais caprichosa e excêntrica.
Ninguém a compreende.
— Conheço-a apenas de vista; porém disseram-me que é uma boa moça, muito amável...
— Oh! Posso falar a este respeito. Fui seu amante quatro meses.
— E por que a deixou? Aborreceu-se?
— Não a deixei. É seu costume; um belo dia, sem causa, sem o mínimo pretexto, declara a
um homem que as suas relações estão acabadas; e não há que fazer. Podem oferecer-lhe somas
loucas, é tempo perdido. Também no dia seguinte, ou no mesmo, daí a uma hora, toma outro
amante que não conhece, que nunca viu.
— Todas são assim, com pouca diferença; ninguém sabe qual é o fio que faz dançar essas
bonecas de papelão.
— Nem tanto. Há mulheres, que, ou por interesse, ou por amizade, ou mesmo por hábito,
se inquietam com a idéia de que seu amante as abandone; mas para esta é absolutamente
indiferente. Tem dias em que está de um humor insuportável: fica uma estátua, e não há forças
humanas que possam arrancar daquela massa inerte um sorriso, uma palavra, um movimento. Se o
homem não possui grande dose de paciência para sofrê-la calado, ela fecha-lhe a porta muito
delicadamente, e manda-lhe dizer pela criada — «que tenha a bondade de deixá-la tranqüila para
todo o sempre». — E uma vez dito, não volta.
— Para quem tem direitos adquiridos, parece-me um tanto forte!
— É o seu engano, continuou o Cunha que estava de veia. A Lúcia não admite que
ninguém adquira direitos sobre ela. Façam-lhe as propostas mais brilhantes: sua casa é sua e
somente sua; ela o recebe, sempre como hóspede; como dono, nunca. Na ocasião em que o senhor a
toma por amante, ela previne-o de que reserva-se plena liberdade de fazer o que quiser e de deixá-lo
quando lhe aprouver, sem explicações e sem pretextos, o que sucede invariavelmente antes de seis
meses; está entendido que lhe concede o mesmo direito.
— Ao menos há reciprocidade!
— Não lhe pede nada, nem sequer doces em tempo de festa, ou sorvetes quando está no
teatro. Nunca a vi bordar em malhas transparentes um desses desejos disfarçados com que as
mulheres iscam à generosidade de seus apaixonados. Se indagam do seu gosto a respeito de algum
objeto que lhe destinam, desconversa e não responde; aceita friamente o que lhe dão, e nada mais.
17
Ora, com uma mulher desta natureza, que não oferece a mínima ocasião de prestar-lhe um serviço e
ganhar-lhe a amizade ou a gratidão, é possível ter direitos adquiridos?
— Há de sofrer com isso!... Tenho-a visto duas ou três vezes e sempre vestida
simplesmente. Não traz um brilhante; entretanto que outras, que não a valem, andam cobertas.
Repare!...
— Qual! Não é essa a razão! Nunca lhe faltam amantes; sei de grandes fortunas no Rio de
Janeiro que se dariam por felizes se ela se decidisse a arruiná-las. E para não ir muito longe, embora
não seja rico, caso ela ainda quisesse...
— Ah! Então as suas relações estão cortadas?
— Inteiramente; e de uma maneira célebre. Vou-lhe contar. Passeávamos numa noite de
luar claro como dia; vendo minha mulher na janela, escondi-me involuntariamente no fundo do
carro com receio de que me reconhecesse. Era inútil, porque estava distraída olhando para o mar.
Entretanto Lúcia, por maldade, mandou ao cocheiro que parasse, saltou do carro, e esteve muito
tempo, em pé, na grade, voltada para minha casa. Eu não sabia o que fizesse, compreende bem; não
queria mostrar-me, e tinha medo de um escândalo. Felizmente ela foi caminhando, e a alguma
distância mandou parar um tílburi que passava; o carro a tinha acompanhado; chegou-se à
portinhola e disse-me: “Não gosto de gente que se esconde, meu senhor. Vá olhar para o mar ao
lado de sua mulher; é mais inocente e mais poético. De amanhã em diante não nos conhecemos”.
Debalde quis impedi-la, meteu-se no tílburi; e o cocheiro, que tinha um excelente animal,
logrou-me: foi-me impossível segui-los. Voltei nessa mesma noite e nos dias seguintes à sua casa, e
achei sempre a porta fechada para mim; até que me recebeu para dizer-me com toda a macieza e
doçura, que eu supunha ter comprado a chave de sua casa, e por isso ia-me restituir o preço de uma
venda que ficara sem efeito. Saí para não voltar mais!
— Arrufos! Se não a procurasse, ela o mandaria chamar no outro dia. É sempre a sombra
do provérbio chinês: segue quem a foge.
— São águas passadas. Estávamos falando da simplicidade de seu trajar. A razão é outra; é
pura avareza.
— Como! Não disse que ela não se deixava levar pelo interesse? Não compreendo. Uma
mulher que rejeita ofertas brilhantes e leva o seu escrúpulo a nunca pedir, nem mesmo uma coisa
insignificante... Essa mulher não pode ser avarenta! O senhor conserva algum ressentimento, disse
eu sorrindo.
— Ora! replicou ele encolhendo os ombros. Não faltam bonitas mulheres. Mas esse
desinteresse de Lúcia é um cálculo, e um cálculo muito fino. Uma mulher que pede, marca o preço
de sua gratidão ou do seu amor; a mulher que não pede é um abismo que nunca se enche! Tenho
experiência destas coisas.
— Em todo o caso, ainda que ela fosse de uma mesquinhez sórdida, as jóias não se gastam
com o uso.
— Se ela as vende!
— Não é possível!
18
— Também eu duvidei por muito tempo, mas tive a prova. Há aqui um Sr. Jacinto que fez
sociedade com ela; tudo que lhe dão, até roupas, é imediatamente reduzido a dinheiro. Lúcia deve
ter por aí em casa do Gomes ou do Souto seus trinta a quarenta contos.
— Guarda para a velhice, se lá chegar.
A tecla que vibrara em nosso espírito ressoava tão melodiosamente, que o pano descera
sobre o primeiro ato do Hernani, sem darmos por isso. O Cunha me parecia conservar vivas
saudades de suas relações com essa moça, que ainda o interessava apesar de tudo. Quanto a mim,
todas as excentricidades e defeitos que atribuíam a Lúcia, ao passo que a faziam descer na minha
estima, davam-lhe um sainete de originalidade e um picante sabor que me excitava. O vício também
tem sua beleza e sua atração, como a virtude; a diferença é que no âmago do fruto os lábios
encontram terra e cinza em vez de polpa deliciosa.
Há de ter reparado em que me desse por desconhecido de Lúcia; é hábito meu, desde que
entrei no mundo, não admitir os estranhos à intimidade de minha vida, ainda mesmo quando se trata
de objetos sem conseqüência. Só dispo a minha alma entre amigos.
Como já lhe disse, suspeitava que Lúcia devia assistir à ceia, para a qual Sá me convidara,
na quinta-feira, jantando no Hotel da Europa. Naquela ocasião quis ter a certeza; e creia que
subindo as escadas da segunda ordem desejava ter-me enganado.
Preciso dizer-lhe a razão?
Ela não estava só: uma multidão de adoradores invadira a porta de seu camarote. Cortejei-a
e passei, esperando a ocasião em que lhe pudesse falar. Tudo quanto achei para mandar levar-lhe foi
sorvetes, doces, algumas flores de baile que vendiam à porta, e o libreto da ópera. As mulheres, a
senhora o sabe por experiência, agradecem mais essas pequenas atenções de que a cercam, do que
os verdadeiros sacrifícios; e eu tinha resolvido fazer a conquista de Lúcia por oito ou quinze dias.
Estive com ela no intervalo seguinte.
— Não tinha nem uma moça bonita do seu conhecimento a quem dar estas flores tão
lindas? disse apertando-me a mão e mostrando dois cactos que se estrelavam, um no seio e outro
entre os seus cabelos.
— Sabes quem as mandou?
— Adivinhei pelo cheiro. É tão suave!...
— Ficam-te muito bem; parecem ter nascido aí entre as rendas e os cabelos.
— Hei de enfeitar-me sempre assim.
— E com as flores que eu te mandarei todas as manhãs.
— Disse isto à toa. Não tenho paciência, nem gosto para estas coisas! Agora foi uma
lembrança e já me está aborrecendo, replicou, batendo com a ponta dos dedos afilados nas pétalas
da flor.
Notei no tom de Lúcia durante o resto desta conversa uma diferença extraordinária com o
modo singelo e modesto que ela tinha em sua casa; agora era a frase ríspida, incisiva e levemente
19
embebida na ironia que destilava de seus lábios, e cujas gotas a maior parte das vezes salpicavam a
ela própria. A cortesã revelava-se a mim sem rebuços, depois que deixara cair na falda do leito o
seu último véu. Não sei se estimei ou senti essa brusca transição; a franqueza me punha mais à
vontade, é certo, porém desvanecia uma doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o
espírito crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de amor.
Perguntei-lhe afinal se me permitia acompanhá-la depois do teatro.
— Esta noite não me pertence!...
— Não vais para casa?
— Não.
— Já sei! Estás convidada para uma ceia...
— Quem lhe disse?
— Em casa do Sá.
— Ah! Não me lembrava que ele é seu amigo! E o senhor, também vai?...
— Para ter o prazer de tua companhia.
— Ainda não estou inteiramente resolvida! murmurou com lentidão, e atalhou logo com
certo estouvamento: porém não, vou! Por que deixaria de ir? Havemos de divertir-nos muito: o Sá
tem gosto.
Acendeu-se nos seus olhos o fogo que já uma vez me tinha queimado as faces; só mais
tarde devia ter a explicação desse olhar.
Quando tomei o meu lugar nas cadeiras, Lúcia tinha desaparecido.
20
VI
Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que caprichara em preparar.
Com trinta anos de idade, um caráter fleumático e uma imaginação ardente, o meu amigo
tinha errado a sua vocação; a natureza o destinara para milionário, tal era o seu desprezo pelo
dinheiro quando se tratava de realizar um de seus mil sonhos dourados. Gozando do conforto e
mesmo da elegância que lhe permitia uma folgada abastança, as flores que ia colhendo pelo
caminho estavam longe de satisfazer-lhe as fantasias orientais; por isso impunha a si mesmo o
sacrifício de acumular algumas pequenas reservas, fruto das economias de muitos dias, para
consumi-las em poucas horas, com um desapego selvagem.
A alma obcecada pelo trabalho, irritada pelas migalhas de prazer que babujava aqui e ali,
tinha de tempos a tempos necessidade de um banho russiano. Nesses dias Sá dava férias às
ocupações graves, convidava alguns amigos, e oferecia à imaginação um pasto régio. Era o reinado
efêmero da devassidão, naquela existência alegre, mas calma de ordinário.
A sua casa de moço solteiro estava para isso admiravelmente situada entre jardins, no
centro de uma chácara ensombrada por casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos
estouros báquicos ou das canções eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se
com o farfalhar do vento na espessa folhagem; e não ia perturbar, nem o plácido sono dos vizinhos,
nem os castos pensamentos de alguma virgem que por ali velasse a horas mortas.
Cheguei por volta de meia-noite.
Já estavam reunidos os convidados: Lúcia, três belas mulheres que eu conhecia de vista, e
um senhor de cabelos e barbas brancas, vestido com esmero extremo, mas com alguma
excentricidade inglesa; um desses velhos ainda verdes que se esforçam em reconstruir sobre os
últimos rescaldos de fogos extintos, com o auxílio de um empertigamento cômico, uma atividade
elástica e um fátuo repertório de anedotas galantes, a mocidade fictícia que só a eles próprios ilude.
Sá mo apresentou com estas palavras:
— O Sr. Couto, capitalista.
O sexto convidado era um moço de 17 anos, o Sr. Rochinha, que trazia impressa na tez
amarrotada, nas profundas olheiras e na aridez dos lábios, a velhice prematura. Libertino precoce,
curvado pela consunção, tinha o orgulho do vício, que estampara nas faces, receando talvez que o
insultassem pondo em dúvida os seus brasões de nobreza, conquistados com o copo em punho
nalguma tasca imunda. Se fosse pobre, o Sr. Rochinha teria fumaças de poeta byroniano; mas ainda
era rico da herança que esbanjava, e portanto não passava de um moço gasto!
Sá tinha jeito para escolher os seus convidados. O contraste do vício que apresentavam aqueles dois
indivíduos: o velho galanteador, fazendo-se criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço devasso,
esforçando-se por parecer decrépito, para que não o tratassem de menino; essa antítese viva devia oferecer ao
observador cenas grotescas. O que eu vi entrando era uma pequena amostra.
O Sr. Couto, fresco e repolhudo, bamboleando-se na cadeira, fazia sortes que as mulheres
aplaudiam, e consumia o terceiro copo de água gelada, para abrandar o fogo interno. O Sr.
Rochinha, derreado pelo sofá, erguia às vezes a cabeça pesada de sono e torpor para absorver um
cálice de conhaque da garrafa que tinha ao lado.
Sá, que se embalançava numa cadeira de palha, saboreando o antegosto das delícias
gastronômicas, ergueu-se para receber-me:
21
— Só esperávamos por ti. Onde te meteste no teatro, que não te vi?
— Estive do lado oposto...
— Cuidei que nos encontrássemos na saída. É meia-noite; vamos cear.
Ao som do tímpano apareceu um criado, que recebeu ordem de servir.
A reunião nada tinha ainda que assustasse os bons costumes. À exceção de alguns gracejos
dúbios da galantaria enrugada do Sr. Couto, conversava-se alegremente como no mais aristocrático
salão. Havia mesmo um ligeiro tom de cerimônia, que, se não era bastante para acanhar, tirava
contudo ao diálogo o colorido vivo e animado que lhe dá a palavra solta.
Entretanto, se a senhora não conhece as odes de Horácio e os Amores de Ovídio, se nunca
leu a descrição da festa de Baco e não tem notícia dos mistérios de Adônis ou do rito afrodísio das
virgens de Pafos, que em comemoração do nascimento da deusa iam certos dias do ano banhar-se
na espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor a quem mais cedo as cobiçava; se ignora
tudo isto, rasgue estas folhas, ou antes queime-as, para que sua neta, achando as tiras que ficarem
sobre a mesa, não se lembre de fazer delas papelotes.
Se ao contrário apreciou esses trechos admiráveis da literatura clássica, pode continuar a
ler, pois não achará imagem, nem palavra que revolte o bom gosto: sensitiva delicada dos espíritos
cultos.
Anunciada a ceia, atravessamos o jardim para ir à sala do serviço.
Não posso deixar de fazer-lhe uma breve descrição dessa parte da casa, que ocupava a ala
direita do edifício, formando uma espécie de pavilhão. Era o palácio encantado do sibaritismo, que
só de longe em longe e nas horas mortas da noite, abria suas portas a chave de ouro para alguns
adeptos de seu culto ou para algum profano que desejasse iniciar-se nos lúbricos mistérios.
Entremos, já que as portas se abrem de par em par, cerrando-se logo depois de nossa
passagem. A sala não é grande, mas espaçosa; cobre as paredes um papel aveludado de sombrio
escarlate, sobre o qual destacam entre espelhos duas ordens de quadros representando os mistérios
de Lesbos. Deve fazer idéia da energia e aparente vitalidade com que as linhas e colorido dos
contornos se debuxavam no fundo rubro, ao trêmulo da claridade deslumbrante do gás.
A mesa oval, preparada para oito convivas, estava colocada no centro sobre um estrado,
que tinha o espaço necessário para o serviço dos criados; o resto do soalho desaparecia sob um
felpudo e macio tapete que acolchoava o rodapé e também os bordos do estrado. Os aparadores de
mármore cobertos de flores, frutos e gelados, e os bufetes carregados de iguarias e vinhos, eram
suspensos à parede. Não pousava o pé de um móvel na orla aveludada que cercava a mesa, e parecia
abrir os braços ao homem ébrio de vinho ou de amor, convidando-o a espojar-se na macia alcatifa,
como um jovem poldro nas cálidas areias da várzea natal.
Pela volta da abóbada de estuque que formava o teto, pelas almofadas interiores das portas,
e na face de alguns móveis, havia tal profusão de espelhos, que multiplicava e reproduzia ao
infinito, numa confusão fantástica, os menores objetos. As imagens, projetando-se ali em todos os
sentidos, apresentavam-se por mil faces.
22
Não lhe falo da ceia que nada tinha de especial. Suntuosa e delicada, como os sabem
preparar aqui, sorria aos olhos e trescalava de aromas penetrantes e deliciosos, que iam prurir as
fibras gástricas. Esse perfume sibárico e o aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as
irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou violáceos do madeira, do porto e do borgonha,
é talvez o mais delicado acepipe que um anfitrião de gosto oferece aos seus hóspedes; porque nesse
bocado homérico os olhos e o olfato servem com fartura ao paladar um pouco de tudo; um primor
de todos os manjares que a capacidade do estômago não permite absorver.
Sentamo-nos dois a dois, porque só havia na sala quatro cadeiras. Não se espante; eram
cadeiras medidas para dois corpos, espécies de pequenos sofás de palhinha, onde se estava mais do
que comodamente. Esta singularidade era um símbolo da união, ou melhor, da comunhão, que o
dono da casa queria que houvesse durante a ceia: não eram oito pessoas, mas quatro amigos que se
divertiam em amável companhia. Acrescia que a longa separação das cadeiras, e a espessa cortina
de flores, deixava a cada um plena liberdade: era ao mesmo tempo a solidão e a convivência.
Ao anunciar da ceia, Lúcia tomou-me o braço que ia oferecer-lhe. Sentamo-nos a um dos
lados da mesa em face de Sá. O Sr. Couto, como de rigor, impava de gula e fatuidade, defronte da
sonolência do Rochinha e à ilharga de uma linda espanholita, que o olhava à sorrelfa com um momo
de petulante zombaria.
Depois da sopa, Sá ergueu o copo cheio de velho madeira e saudou os seus hóspedes:
— Estão feitos os cumprimentos, meus senhores: gozemos. É meia-noite, disse mostrando
a pêndula de alabastro. Até uma hora come-se. Caso alguém reclame, prorroga-se o tempo.
— A não ser o Sr. Couto! murmurou a companheira deste.
— Aprovado sem discussão, retrucou o velho. Com os diabos, Nina! Comer é uma das
boas coisas deste mundo; porém não é a melhor.
— Demais, a mesa aí fica; e ninguém erra a boca mesmo no escuro! acudiu Laura rindo.
Creio que o Sr. Couto corou; em todo o caso remexeu-se, como se estivesse sobre alfinetes.
— Ora! Isso sucedeu uma vez; e foi para te meter febre.
— Não se trata dos sessenta anos do Sr. Couto...
— Quarenta e cinco, minha jóia! E por fazer!...
— Passemos à ordem do dia! exclamava uma francesa já abrasileirada, que tinha privado
com um orador da câmara.
— Bem! continuou Sá: a hora seguinte bebe-se. É bastante?
— É demais! Em menos tempo dou conta de uma cesta de champanha! gritou Nina.
— Não admira! Uma burra vale mais do que uma cesta; e tu eras capaz de esvaziá-la num
minuto!
— Então, adotada a meia hora? perguntou Sá interrompendo o Couto.
23
— Para mim é indiferente, respondeu o Rochinha acordando. Já se foi o tempo em que me
embriagava com essas limonadas de espuma e esses vinagres do Reno. Sou uma velha esponja, meu
caro: fui curtido a kirsch e rum.
— Manda-se preparar para ti uma gengibrada.
— Que bicho é esse?
— É uma infusão de gengibre fervida em aguardente de trinta e seis graus, com uma
garrafa de marasquino.
— Deliciosa bebida! disse Lúcia. Não leva também algumas gotas de chumbo derretido?
— Finalmente, meus senhores, as duas horas em ponto, imola-se a razão no fundo das
garrafas.
— Bravo! gritaram as mulheres em coro.
— Aceito por unanimidade!
— Posso imolar a minha desde já, gritou o Couto.
— Não admito! Requeiro que se respeitem as cãs. . .
— E a inocência dos criados.
— À vista das considerações devidas ao sexo, cedo!
— É melhor; mesmo porque seria difícil imolar o que não existe.
— Procedamos em regra. Às duas horas portanto pára-se a pêndula. Abolição completa da
razão, do tempo, da luz; e inauguração solene do reinado das trevas e da loucura. Até lá liberdade
completa dentro dos limites da decência; tudo quanto possa alegrar, como o gracejo, a cantiga, o
brinde ou o discurso, é permitido; salvo o direito ao respeitável público feminino e masculino de
patear as sensaborias.
— Nota do taquígrafo. Numerosos apoiados; o orador é cumprimentado.
E o Couto para realizar o seu dito propôs a saúde de Sum, e acompanhou-a com um
discurso recheado de disparates, interrompido a cada palavra pela algazarra dos estouros báquicos.
Não tomei nem uma parte nesse primeiro tiroteio; Lúcia apenas dissera uma palavra. Ela
estava visivelmente contrariada; por momentos caía em profunda distração, de que eu a tirava a
custo; depois tomava-se de um estouvamento e sofreguidão que não era natural. Uma vez levantado
o cálice, a contração muscular foi tão violenta que o cristal espedaçou-se entre as falanges
delicadas. Tinha-se ferido, e para estancar o sangue, mergulhou o dedo no meu copo cheio de
Sauterne: o áureo licor enrubesceu; e eu esgotei-o até a última gota num assomo de galanteio
romântico.
Lúcia acompanhou o meu movimento com um olhar tão cheio do que olhava, como se eu
lhe bebera a própria vida nessas gotas tintas de seu sangue.
24
— Se o bebesse todo!... balbuciou.
— Tu morrias, Lúcia! respondi sorrindo.
— Eu... viveria; e o resto seria pasto dos vermes, como foi pasto dos homens.
Semelhante à mosca importuna que se afoga no vinho, a palavra lúgubre afogou-se no
entusiasmo que começava a brilhar em todas as frontes.
Lúcia apanhou no ar o primeiro dito que passava para fazê-lo ressaltar com uma das
réplicas vivaces, titilantes de sarcasmo e ironia, que em certos momentos fervilhavam de seus
lábios. Era impossível segui-la nesse brilhante rasto de seu espírito.
25
VII
— Sr. Couto, dizia Sá, recomendo-lhe estas perdizes! Estão saturadas de trufas e castanhas.
— Obrigado; é muito forte para mim. Daqui a dez anos, não digo que não.
— Passa-me as perdizes! exclamou o Rochinha piscando os olhos com certa malícia.
— Por favor, Sr. Couto, disse Lúcia rindo, empreste ao Sr. Rocha os seus cabelos brancos!
Por esta noite ao menos...
— Oh! já não são poucos os que eu tenho.
— Mas não são bastantes, Rochinha, atalhou Sá. Lúcia tem razão.
Esta continuou:
— Vou fazer uma proposta.
— Muito bem; atenção em ambas as colunas, gritou o velho Couto abrindo os braços.
— Proponho...
— A minha saúde?
— Um coro com acompanhamento de pratos?
— Não! não! Se continuam, subo à rampa!
— Silêncio!
— Proponho que esta noite o Sr. Couto seja tratado por Coutozinho, que é mais terno; e o
Sr. Rochinha sem o embirrante diminutivo, que lhe dá uns ares de menino de colégio!...
Houve explosão de gritos e aplausos.
— Acrescenta, disse o Sá, que Nina chamará o Sr. Couto — nhonhô, e Laura o Rochinha
— papai.
— Não admito! O incesto é contra a moral, gritou Lúcia.
— Como trata-se de nomes, eu também proponho uma mudança, bocejou o Rochinha. Em
lugar de Lúcia — diga-se Lúcifer.
— É velho! Não valia a pena acordar para isto. Quem não sabe que eu sou anjo de luz, que
desci do céu ao inferno?
A guerrilha de facécias e ditos mais ou menos chistosos continuou tão viva, que renuncio à
idéia de reproduzi-la.
Não pensava, quando comecei a escrever estas páginas que lhe destino, lutar com tamanhas
dificuldades; uma coisa é sentir a impressão que se recebeu de certos acontecimentos, outra
26
comunicar e transmitir fielmente essa impressão. Para o conseguir, cumpre que nada se omita; e aí
justamente está o meu embaraço, porque há episódios daquela noite, que eu desejava bem poder
deixar nos refolhos de minha memória ou no fundo do meu tinteiro.
Se tivesse agora ao meu lado o Sr. Couto, estou certo que ele me aconselharia para as
ocasiões difíceis uma reticência. Com efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro, como a
hipocrisia é a reticência na sociedade?
Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião antes queria desistir do meu propósito, do
que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas
da época aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião tem o mesmo efeito da máscara, o de
aguçar a curiosidade.
Por isso quando em alguns livros moralíssimos vejo uma reticência, tremo! Se uma
curiosidade ingênua de 15 ou 16 anos passar por ali, não verá abrir-se em cada um desses pontinhos
o abismo do desconhecido?
A minha história é imoral; portanto não admite reticências; mas tenho um desvanecimento,
pouco modesto, confesso. Caso a senhora cometesse a indiscrição de ler estas páginas a alguma
menina inocente, talvez chegassem ao fim sem uma única pergunta. A borboleta esvoaça sem
pousar entre as flores venenosas, por mais brilhantes que sejam; e procura o pólen no cálice da
violeta e de outras plantas humildes e rasteiras. O espírito da moça é a borboleta; o seu instinto a
castidade.
Entretanto, se este manuscrito tivesse de sair à luz pública algum dia, e um editor
escrupuloso quisesse dar ao pequeno livro passaporte para viajar das estantes empoeiradas aos
toucadores perfumados e às elegantes banquinhas de costura, bastaria substituir certos trechos mais
ousados por duas ordens de pontinhos.
A que se reduz por fim de contas a moral literária! Ao mesmo que a decência pública: a
alguns pontos de mais ou de menos.
Lúcia fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria, e caíra no costumado abatimento e
distração. Eu a contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se
passava, quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaído:
— Não lhe disse que nos havíamos de divertir muito?
— Contudo preferia estar só contigo. Todo o prazer de tão amável companhia, todo o
brilho de teu espírito, que como o diamante faísca mais vivo quanto mais vivos são os raios da luz
que o fere, nada disto faz esquecer a manhã de ontem!
— Ora! Há tanta mulher bonita! Qualquer destas vale mais do que eu, acredite! Demais,
quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado, saberá o senhor de quem são os
lábios que toca? Qual? É uma mulher! Uma presa em que ceva o apetite! Que importa o nome?
Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe preparam esta ceia? Conhece-os?... Nem
por isso as iguarias lhe parecem menos saborosas.
Estas palavras, assim lidas friamente, nada são comparadas com a voz amarga e sibilante
que as pronunciava. Soltavam-se de seus lábios, e caíam no meu espírito, tão impregnadas de ondas
de sarcasmo, que deixavam passando uma impressão cáustica e dolorosa.
27
— Não fales assim, Lúcia. Podia responder-te com a tua mesma comparação. Estas
gelatinas e massas delicadas sabem que paladar as tem de gozar? Nem por isso deixam de exalar os
mesmos aromas e guardar igual sabor para o dono da casa, como para qualquer dos convidados.
— Ou para os criados a quem se atiram os sobejos da ceia?... Não cuide que me ofendo! Se
o senhor não diz porque é delicado, pensa-o talvez!
— Mudemos de conversa. Este tom de ironia me incomoda. Deste-me uma hora de prazer,
que não esquecerei nunca. Não apagues o perfume desta lembrança.
— Que mal faz? Comprará outras horas de igual prazer: custam-lhe tão pouco!
— Oh! não seria o mesmo, não!
— Já não teria o encanto da novidade?
— Não teria a doce ilusão que arrancarias do meu espírito.
— Mas o senhor não sabe então?... perguntou erguendo os grandes olhos límpidos e
fulgurantes.
— Sei tudo, mas não o quero saber; e menos de tua boca! Não sou para ti mais do que os
outros; não te mereço nada; porém deixa-me a venda sobre os olhos, eu te peço! Sinto-me feliz com
ela.
— O que não o impediria de ver-me com indiferença passar dos seus braços aos de
qualquer destes homens, daquele velho por exemplo.
— Serias capaz de fazer isso, Lúcia?
— O que tenho eu feito toda a minha vida? Logo ou alguns dias depois... Questão de
tempo!
— Não falas seriamente! É impossível!
— Aborreço o fingimento: não gosto de passar pelo que não sou. É tão ridícula essa
comédia do amor, que representam os velhos e os meninos!
O escárnio da repetição de palavras, que eu lhe dissera na véspera, esmagou-me.
— Estás tão calada agora, Lúcia! exclamou o Couto.
— Paulo está naturalmente fazendo-lhe a corte! replicou Sá rindo.
— E por isso Lúcifer desapareceu do horizonte!
— Lúcifer espera o reino das trevas! O Sr. Paulo fazendo-me a corte!... Seria
soberanamente ridículo para nós ambos!
— É a segunda vez que repetes uma palavra dita por mim num momento de despeito! Se te
ofendi, perdoa-me, murmurei à meia voz.
28
— Gostei da frase!
Estourava o champanha, fumegando nos cálices de cristal. Foi o sinal de um concerto
infernal de saúdes, hurras e cantigas descabeladas, com o acompanhamento de uma orquestra de
copos e pratos; no meio do rumor distinguia-se a voz de falsete do Couto, e a risada estridente de
Lúcia, cujas volatas tinham o timbre metálico do canto da araponga entre os murmúrios da floresta.
Apenas começaram as primeiras explosões produzidas pelos vapores do vinho aristocrático, os
criados saíram batendo a porta do serviço, que fechou-se interiormente.
Estávamos sós; a pêndula marcava uma hora e quarenta minutos; pouco tardaria o
momento solene que o dono da casa, novo Erasmo, destinara para a inauguração da loucura.
— Meus senhores, confesso que a minha vaidade de anfitrião, amador das artes, está um
tanto humilhada! Ainda não disseram uma palavra a respeito dos meus quadros!
— De quem é a culpa? A magnificência da ceia e a amabilidade do hóspede não
consentiram que levantássemos os olhos.
— Mas são realmente soberbas estas pinturas!... exclamou o Couto. Que posições
admiráveis!... Ressuscitariam um morto. Apenas noto a ausência absoluta do sexo feio.
— Isso prova o bom gosto do pintor.
— E o mau gosto das filhas de Lesbos.
— Então acham essas mulheres admiráveis?
— Provocantes!
— Arrebatadoras!...
— E tu, Paulo, que dizes?
— Digo que vi ontem um quadro deste gênero, que eu não trocaria por todas as tuas
pinturas! Era uma mulher; mas as formas palpitavam; a carne latejava sob os olhos que a
devoravam; os lábios comiam de beijos a vítima que eles provocavam; e entre a cútis transparente
corria o sangue, que se precipitava do coração espadanando em cascatas!
— Sublime! A descrição é digna do quadro... que eu não vi! disse o Rochinha.
— Onde descobriste essa maravilha?
— É meu segredo.
— Nem se pode saber o nome do artista, Sr. Silva?
— Não adivinharam ainda!
— Será Rafael?
— É um Ticiano póstumo!
29
— Ou algum gênio desconhecido?
— Enganaram-se: é um artista de todos os tempos e de todos os países; é o artista divino
que fez as flores, as estrelas e as mulheres!
— Ah! neste gênero de pintura tenho visto o melhor que é possível!
— Eu aposto, disse Lúcia, que o Sr. Silva, como os poetas, embelezou o seu quadro. Viu o
que sentia; mas não o que era.
— Que importa! É outra ilusão minha que desejo guardar!
— Talvez não a guarde por muito tempo...
— Pois, meus senhores, continuou Sá, mostrando-lhes estas pinturas, preparei-lhes uma
agradável surpresa. É nada menos que o original delas; não o original frio e calmo, mas um
verdadeiro modelo, vivendo, palpitando, sorrindo, esculpindo em carne todas as paixões que deviam
ferver no coração daquelas mulheres.
— Onde está ele?
— Lúcia vai mostrar-nos.
— Ah!...
— Magnífico!
— Que maçada! Esqueci o meu pince-nez, disse o Rochinha.
— Estás pronta, Lúcia?
Ela ergueu-se, circulando a mesa com o olhar ardente e fascinado.
— Tu não farás isto, Lúcia! disse-lhe eu à meia voz.
Dobrando como uma palma flexível o seu talhe esbelto, atirou-me ao ouvido uma palavra,
que vazou no meu cérebro e correu-me pela medula dos ossos, como gota de metal em fusão.
— É preciso pagar a conta da ceia!
Travei-lhe da mão:
— Eu te suplico.
O seu corpo oscilou; caiu inerte sobre a cadeira.
— Que é isso? exclamou Sá. Tens vergonha de Paulo? É a única pessoa demais que está
hoje aqui.
— Ah! não é a primeira vez? perguntei empalidecendo.
30
— Será a primeira vez que copiará estes quadros, pois não há oito dias que os comprei;
mas Lúcia não precisa de modelos, e já nos mostrou, não uma, porém muitas noites, que tem, com a
beleza dos anjos, o gênio da estatuária. Não é verdade, meus senhores?
— Bem vês, Sá, que a honra não é para todos. Sou indigno dela! disse eu.
— O que me está parecendo é que Lúcia quer apaixonar-te.
Soltei uma gargalhada.
— Perde o seu tempo! A mim?
Lúcia ergueu a cabeça com orgulho satânico, e levantando-se de um salto, agarrou uma
garrafa de champanha, quase cheia. Quando a pousou sobre a mesa, todo o vinho tinha-lhe passado
pelos lábios, onde a espuma fervilhava ainda. Ouvi o rugido da seda; diante de meus olhos
deslumbrados passou a divina aparição que admirara na véspera.
Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros de flores, trançou-a
nos cabelos, coroando-se de verbena, como as virgens gregas. Depois agitando as longas tranças
negras, que se enroscaram quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os
braços e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com a posição, com o gesto,
com a sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo, com a voz que expirava no flébil
suspiro e no beijo soluçante, com a palavra trêmula que borbulhava dos lábios no delíquio do êxtase
amoroso.
Deviam de ser sublimes de beleza e sensualidade esses quadros vivos, que se sucediam
rápidos; porque até as mulheres aplaudiam com entusiasmo e frenesi. Revoltou-me tanto cinismo;
ergui-me da mesa.
— Que é isso? Não admiras? O que viste era mais perfeito!
— Não por certo!... Estes quadros são mais expressivos e naturais! São sublimes de
verdade! Porém sinto-me sufocado pela atmosfera desta sala; preciso de ar.
Abri a porta que dava para o jardim, e saí.
31
VIII
Não sou dos felizes, que conservam a virgindade d'alma, e levam à santa comunhão do
casamento a pureza e castidade das emoções. Bem cedo ainda senti murchar a bonina delicada do
coração; e afoguei a minha ignorância nos gozos rapidamente fruídos e brevemente olvidados.
Há porém na febre dos sentidos uma união íntima da matéria, unissonância de desejos e
repercussão instantânea do prazer, que opera a transfusão mística da palavra santa. O homem e a
mulher são a possessão mútua — una caro, a carne única, onde vivem duas almas que nada vêem,
porque só vêem a si.
Compreenda agora por que a bacante ficou fria e gelada para mim, na sua ardente lascívia. A mulher que com
seus encantos cevava outros olhos que não os meus, a estátua animada de desejos que eu não havia excitado, em vez de
provocar em mim a admiração, indignou-me. Tive vergonha e asco, eu, que na véspera apertara com delírio nos meus
braços essa mesma cortesã, menos bela ainda e menos deslumbrante, do que agora na sua fulgurante impudência.
Quando a mulher se desnuda para o prazer, os olhos do amante a vestem de um fluido que
cega; quando a mulher se desnuda para a arte, a inspiração a transporta a mundos ideais, onde a
matéria se depara ao hálito de Deus; quando porém a mulher se desnuda para cevar, mesmo com a
vista, a concupiscência de muitos, há nisto uma profanação da beleza e da criatura humana, que não
tem nome.
É mais do que a prostituição: é a brutalidade da jumenta ciosa que se precipita pelo campo,
mordendo os cavalos para despertar-lhes o tardo apetite.
Contudo, passado o primeiro assomo, achei em minha alma, talvez mais piedade do que
indignação. Lembrei-me do que Lúcia me tinha dito ao ouvido, da entonação áspera de sua voz, do
estrépito nervoso de seu riso, e tive dó dessa moça. Que motivo a obrigava a descer tão baixo? Não
era a cupidez, não; apesar de quanto me dissera o Cunha no teatro, havia naquela mulher um quer
que seja, que revelava à primeira vista a nobreza do caráter. Devia de ser a depravação; mas a
depravação como ainda não tinha encontrado, que se violentava, em vez de comprazer-se nos seus
excessos.
Uma curiosidade irresistível me aproximara da porta que ficara entreaberta.
Lúcia, trançando a sua longa manta listrada de escarlate, que a envolveu como um pálio
romano, voltara ao seu lugar e amolgara sobre a cadeira um corpo sem articulações. Os aplausos e a
ruidosa grita continuavam no meio do fogo rolante de ditos licenciosos. Passado um instante ela
ergueu a cabeça, e seu olhar embaciado circulou, indo lentamente de um a outro conviva.
— Quem estava aqui? balbuciou indicando o lugar que eu havia deixado.
— Já perdeste a memória? Bom sinal!
— Era eu, Lúcia! Não te lembras! disse o Couto.
— Mas havia alguém aqui?
— Não te inquietes!... Paulo foi tomar ares no jardim. Já volta.
— E se não voltar..., disse o Couto esticando-se na sua pretensiosa reticência.
— Era ele!... exclamou Lúcia rindo às gargalhadas.
32
— Está embriagada! pensei eu.
— E tu, Nina, não queres que também admiremos a tua beleza? dizia Sá.
— É verdade! Apreciaremos o contraste! gritou o Rochinha.
— Nada, ainda não desci a este ponto.
— Com efeito é preciso ter perdido a vergonha, murmurou Laura com desprezo.
Lúcia, que saíra da mesa, voltou-se com uma dignidade e nobreza impossível de pressentir
na cortesã da véspera e na bacante de há pouco; mas essa expressão foi rápida; sucedeu-lhe a
habitual doçura, ainda realçada por um tom humilde.
— Não faças caso, é inveja, exclamou Sá.
— Tens razão, Laura, perdi a vergonha para ganhar o dinheiro de que precisas; e desci a
este ponto, Nina, desde que me habituei a desprezar o insulto, tanto como o corpo que nós
costumamos vender.
E sem esperar resposta, dirigiu-se à porta e saiu. O meu primeiro movimento foi de
repulsão; mas não sei que atração irresistível me prendia a esta mulher, que a segui de longe. Vi-a
caminhar de um lado para outro, olhando em torno como se procurasse alguém; por fim caiu
extenuada sobre um banco de relva.
Aproximei-me então, e tomei-a nos braços; metiam dó as contrações nervosas que
crispavam seu belo corpo, e os soluços de angústia que lhe partiam o seio e cerravam a garganta,
sufocando-a. Penou assim um tempo longo, em que receei por vezes que não expirasse sobre o meu
peito. Finalmente a crise passou; foi-se acalmando, e desfaleceu.
— Que idéia triste o senhor deve ter de mim! murmurou com a voz sumida.
— Para que te prestas a estas coisas!
— O que sou eu?
— Embora! Há sempre um resto de dignidade, que impede a mulher de consentir no que
acabas de fazer.
— Dignidade de quem se despreza a si mesma!... O que é este corpo que lhes mostrei há
pouco, e que lhes tenho mostrado tantas vezes! O que vale para mim? O mesmo, menos ainda, do
que o vestido que despi; este é de seda e custou o que não custa uma de minhas noites!... Oh! creia,
mais nua do que há pouco me sinto eu agora, coberta como estou e aqui onde a sombra nem lhe
deixa ver meu rosto!... Porém sua alma vê o que fui e o que sou, e tenho vergonha!
Lúcia atirou-se soluçando sobre o meu peito; e o que me restava ainda de indignação,
desvaneceu-se.
— Por que não persististe na tua recusa? Eu te pedi!
— Tinha eu o direito de recusar? Não foi para isso que se deu esta ceia!
33
— Sá te disse alguma coisa a meu respeito?
— Não; mas adivinhei. Queria que lhe roubasse a surpresa que estava preparada, e aguasse
com uma contrariedade a festa de seu amigo? Demais, não havia de saber; não lhe contariam, se já
não lhe contaram, toda a minha vida?
— Não me incomodaria tanto como o que vi.
— Mas então para que veio?
— Não sabia o que se tinha de passar; suspeitava que te havia de encontrar aqui; porém
nunca pensei que homens de educação achassem prazer em obrigar uma pobre mulher a semelhante
degradação!
— Eles compram o seu prazer onde o acham; a degradação e a miséria é a de quem recebe
o preço. Senti-o hoje! Nunca isso custou-me tanto! Conheci que era uma infâmia; se o senhor não
zombasse de mim, não o teria feito por coisa alguma deste mundo.
— Nem sei onde estava naquele momento! Mas, Lúcia, já que o confessas, promete-me...
Nada sou para ti, as nossas relações datam de ontem; porém em nome da indignação que senti, e do
interesse que me inspiras, promete-me que nunca mais farás semelhante coisa.
Ela ergueu-se:
— Eu lhe juro, disse com a fala grave e comovida.
Sentando-se de novo ao meu lado, continuou:
— E o senhor não me julgará muito indigna? Não me desprezará?
— Não te desprezo; tenho pena de ti.
Lúcia travou-me da mão e beijou-a.
Esse beijo submisso fez-me mal.
Afastei-me arrebatadamente. Senti as mãos úmidas de lágrimas, que eu não sentira
chorando-as. Lúcia aproximou-se pouco e pouco; os seus passos ligeiros crepitavam na areia; parou
diante de mim, e não me animei a olhá-la.
Estranha contradição!
Quando a lembrança ainda recente devia avivar as cores do quadro vergonhoso e revoltante
que me tinha indignado, eu esquecia a pesar meu. Se fazia um esforço para evocar a cena da ceia, as
idéias confundiam-se; a imagem da bacante, surgida um momento, ia-se desvanecendo até sumir-se;
e nas sombras que nublavam o meu pensamento assomava radiante a mulher que eu possuíra na
véspera com todas as forças de minha vitalidade. O desejo parecia mesmo ter adquirido nova
têmpera, e mais poderosa, na luta de que saíra.
Lúcia se tinha sentado junto de mim; alisava-me os cabelos, olhando-me à luz das estrelas.
34
— Se não tivesse vindo! suspirou ela. Não me fugiria; talvez olhasse para mim como das
primeiras vezes que nos vimos; ao menos ainda poderia dar-lhe um pouco de prazer, já que nada
mais tinha para dar-lhe.
— E por que não me darás ainda, Lúcia, esse prazer?
— Depois do que se passou?
— Cala-te! murmurei surdamente. Tu és uma criança!... Não tens culpa do que fizeste!
— Deveras me perdoa?... Ainda me quer?
Colei os meus lábios ao ouvido de Lúcia; tinha vergonha do eco de minhas palavras.
— Quero-te para sempre! Quero que sejas minha e minha só.
— Ah!...
Lúcia saltou como a gazela prestes a desferir a corrida, quando as baforadas do vento lhe
trazem o faro de tigre remoto; estendendo o braço mostrou-me a sala da ceia, donde escapava luz e
rumor.
— Mais longe!...
Fomos través das árvores até um berço de relva coberto por espesso dossel de jasmineiros
em flor.
— Sim! Esqueça tudo, e nem se lembre que já me visse! Seja agora a primeira vez!... Os
beijos que lhe guardei, ninguém os teve nunca! Esses, acredite, são puros!
Lúcia tinha razão. Aqueles beijos, não é possível que os gere duas vezes o mesmo lábio,
porque onde nascem queimam, como certas plantas vorazes que passam deixando a terra maninha e
estéril. Quando ela colou a sua boca na minha pareceu-me que todo o meu ser se difundia na
ardente inspiração; senti fugir-me a vida, como o líquido de um vaso haurido em ávido e longo
sorvo.
Havia na fúria amorosa dessa mulher um quer que seja da rapacidade da fera.
Sedenta de gozo, era preciso que o bebesse por todos os poros, de um só trago, num único
e imenso beijo, sem pausa, sem intermitência e sem repouso. Era serpente que enlaçava a presa nas
suas mil voltas, triturando-lhe o corpo; era vertigem que nos arrebatava a consciência da própria
existência, alheava um homem de si e o fazia viver mais anos em uma hora do que em toda a sua
vida.
A aspereza e feroz irritabilidade da véspera se dissipara. O seu amor tinha agora sensações
doces e aveludadas, que penetravam os seios d’alma, como se a alma tivera tato para senti-las.
Não fui eu que possuí essa mulher; e sim ela que me possuiu todo, e tanto, que não me
resta daquela noite mais do que uma longa sensação de imenso deleite, na qual me sentia afogar
num mar de volúpia.
35
Quando o primeiro raio da manhã tremulando entre as folhas rendadas veio esclarecer-nos,
Lúcia, reclinada a face na mão, me olhava com o ressumbro de doce melancolia, que era a flor de
seu semblante em repouso. Embebendo o olhar no meu, procurou o pensamento no fundo de minha
alma. Sorri; ela corou; mas desta vez entravam também no rubor os toques vivaces do júbilo que
iluminou-lhe a fronte.
Incompreensível mulher!
A noite a vira bacante infrene, calcando aos pés lascivos o pudor e a dignidade, ostentar o
vício na maior torpeza do cinismo, com toda a hediondez de sua beleza. A manhã a encontrava
tímida menina, amante casta e ingênua, bebendo num olhar a felicidade que dera, e suplicando o
perdão da felicidade que recebera.
Se naquela ocasião me viesse a idéia de estudar, como hoje faço à luz das minhas
recordações, o caráter de Lúcia, desanimaria por certo à primeira tentativa. Felizmente era ator
neste drama e guardei, como a urna de cristal guarda por muito tempo, o perfume de essência já
evaporada, as impressões que então sentia. É com ela que recomponho este fragmento de minha
vida.
Lúcia disse-me adeus; não consentiu que a acompanhasse, porque isso me podia
comprometer. Insisti debalde; e recolhi-me de meu lado quebrado de fadiga e sono.
Em casa de Sá já se dormia quando partimos.
36
IX
Acordei por volta de duas horas, e fui escrever. Depois da noite que passara talvez suponha
que fiz versos. Pois engana-se: fiz contas.
Revi o meu livro de assentos, dando balanço à minha fortuna, que então orçava por uma
quinzena de contos. Era bem pobre; mas estava independente, formado, no ardor da mocidade e sem
encargos de família. Já tinha a intenção de estabelecer-me aqui; e antes de começar a vida árida e o
trabalho sério do homem que visa ao futuro, queria dar um último e esplêndido banquete às
extravagâncias da juventude.
Quem melhor do que Lúcia me ajudaria a consumir as migalhas que me pesavam na
carteira, e me embelezaria um ou dois meses da vida que eu queria viver por despedida? Separei o
necessário para a minha subsistência durante dois anos; e com a fé robusta que se tem aos vinte
anos, rico de esperanças, destinei o resto ao festim de Sardanapalo, onde eu devia queimar na pira
do prazer a derradeira mirra da mocidade.
Tendo registrado no meu budget, com um simples traço de pena, a importante resolução,
saí para matar a sede de ar, de sol e de espaço que sente o homem depois do sono tardio e
enervador. Espaciei o corpo pela Rua do Ouvidor; o espírito pelas novidades do dia; os olhos pelo
azul cetim de um céu de abril e pelas galas do luxo europeu expostas nas vidraças.
Era um domingo; o ócio dos felizes desocupados tinha ganhado o campo e os arrabaldes.
Encontrei por isso poucos conhecidos e fria palestra.
Queria fazer horas para ir ver Lúcia. Com os hábitos de voluptuosa indolência, que tomam
as mulheres a quem faltam os cuidados domésticos, não era natural que tão cedo fosse visível. Para
ocupar-me dela, entrei em casa do Valais, o joalheiro do bom-tom.
Comprei, não o que desejava, mas o que permitiam as minhas finanças. Só os milionários
gozam do prazer de medir a sua liberalidade pela efusão do sentimento; entretanto o desejo avulta
justamente onde míngua a fortuna. Tinha escolhido uma dessas galantarias de ouro e brilhantes, que
custam algumas centenas de mil-réis, e valem um capricho, uma tentação, um sorriso de prazer.
Ao sair vi um adereço de azeviche muito simplesmente lavrado, e por isso mesmo ainda
mais lindo na sua simplicidade. Tênue filete de ouro embutido bordava a face polida e negra da
pedra. Há certos objetos que um homem dá à mulher por um egoístico instinto do belo, só para ver
o efeito que produzem nela. Lembrei-me que Lúcia era alva, e que essa jóia devia tomar novo realce
com o brilho de sua cútis branca e acetinada. Não resisti; comprei o adereço, e tão barato, que
hesitei se devia oferecê-lo.
Seriam quatro horas.
Achei Lúcia reclinada no sofá. Estava matando o tempo, ora examinando o crivo dos
punhos e o debuxo do penteador de cambraia, ora cerrando as pálpebras para engolfar o espírito
nalguma deliciosa reminiscência.
— Preguiçoso! Há duas horas que o espero! disse dando-me a mão e sorrindo.
— Saí há muito tempo, e não passei por aqui com receio de incomodar-te.
— Tenha a bondade de dizer: quem lhe deu o direito de pensar que me incomoda?
37
— O meu gênio! Desconfio de mim.
— Pois o seu gênio enganou-o; fique sabendo que o senhor nunca me pode incomodar a
qualquer hora que venha aqui! Nunca; ouviu?
— E quanto tempo durará isso?
— Ah! já lhe disseram que sou volúvel! Eles têm razão de o dizer; porém má como sou,
ainda assim não me julgue pelo que lhe contarem.
— Não te julgo, nem te quero julgar. Conheço-te de ontem; de ontem somente, tu o
disseste!
— Pois essa que fui ontem continuarei a ser, já que Deus não quis que fosse a outra, que
viu da primeira vez.
— Não era mais bonita do que a desta noite.
— Quem sabe? Mas diga-me, continuou acariciando-me o rosto com a mão travessa;
deveras pensou hoje alguma vez em mim, ou esqueceu-se apenas nos separamos?
— Tanto, que te trouxe uma lembrança.
— Ah! quero ver, sou muito curiosa!
Tirei as jóias e dei-lhe; o sorriso faceiro que despontava no lábio murchou de repente.
Atribuí a excesso de curiosidade e atenção, porém ela abrindo lentamente a caixa, lançou-lhe apenas
um olhar distraído, e deitou-a sobre a cadeira com uma frieza glacial e um desgosto, que
transparecia entre a expressão de forçada amabilidade com que me agradeceu:
— Obrigada; não valho tanto!
Esse tanto foi dito com uma surda vibração, e profunda, como se a voz que o articulara
houvesse ferido interiormente todas as cordas de sua alma. “Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez
e a avareza são as molas ocultas que movem este belo autômato de carne. Está habituada a presentes
de milionário; desdenha a migalha do pobre”.
Tive ímpetos de cuspir dos lábios os beijos que recebera e não podia pagar pelo seu justo
preço.
Abria ela a outra caixa com a mesma lentidão e indiferença; quando súbito expandiu-se
num desses enlevos que descem, como ondas de fluido luminoso, da fronte apaixonada e inteligente
da mulher que ama. Soltou um pequeno grito de prazer, e agradeceu-me desta vez sem palavras,
com um só olhar, mas olhar como ela unicamente os tinha; olhar fundo e longo, que parecia surgir
de um abismo e dilatar-se ao infinito.
Posso eu descrever-lhe a ingênua alegria e as visagens graciosas e infantis que ela fez
diante dessa jóia sem valor? Era a gárrula travessura da criança a quem se deu um brinquedo bonito;
a mimosa garridice da menina que festeja o seu primeiro enfeite de moça; as carícias felinas do gato
brincando com a tímida presa que vai devorar.
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— Que bonito, meu Deus! exclamava a cada instante. Quero ver como me fica! Hei de
trazê-lo sempre!
Imediatamente substituiu os brincos que tinha pelos de azeviche, cingiu o colar, e saltando
como uma louquinha, correu ao espelho; aí repetiu-se a mesma cena. Apesar da naturalidade e do
ímpeto involuntário destes gestos, a minha habitual desconfiança suspeitou naquela efusão de
contentamento uma zombaria amarga; supus um momento, que ela pretendia ironicamente fazer-me
sentir por esse modo a mesquinhez do presente.
Não lhe cause isto surpresa; lembre-se que idéia devia fazer então dessa mulher pelos
precedentes que conhecia de sua vida.
— Que significa esta admiração fora de propósito, Lúcia? Estou arrependido de te haver oferecido
semelhante ninharia; mas cuidei que me perdoasses em atenção à outra, que não me parecia muito indigna de tua beleza.
Não sou rico; e há pouco a indiferença com que recebeste esta pulseira fez-me sentir bem amargamente a minha
pobreza. Estou convencido que o fizeste sem querer.
Essa criatura tinha a intuição rápida e instantânea, que é no homem a segunda vista do
gênio, e em algumas mulheres privilegiadas um instinto sutil do coração. À primeira palavra, a
expansiva alegria que vertia de toda sua pessoa caiu-lhe aos pés. Ficou séria, submissa e
envergonhada, como a criança traquinas, que surpreende em flagrante o ralho paterno. Recolheu
confusa o adereço e veio sentar-se ao meu lado.
— Diz que recebi com indiferença esta pulseira! E qual é a causa da minha alegria?
Disfarcei para o senhor não pensar que desejo me venha ser somente pelo valor destes brilhantes.
Além disto, quando se recebe mais do que se vale, fica-se acanhada.
Compreendo hoje as rápidas transições que se operavam nessa mulher; mas naquela
ocasião, como podia adivinhar a causa ignota que transfigurava de repente a cortesã depravada na
menina ingênua, ou na amante apaixonada!
— Mas por isso não se zangue comigo!
E inclinou a face para receber uma carícia.
— Torno a pedir-te, Lúcia; nunca me digas o que não sentes. Tens o mau gosto de te
rebaixares.
— Se eu quisesse parecer melhor do que realmente sou e fingir sentimentos que não posso
ter, me tornaria ridícula. Talvez o senhor fosse o primeiro a escarnecer de mim.
— Tudo isto, sabes o que é? É orgulho ofendido por algumas palavras que me escaparam
anteontem. Não negues; já te conheço melhor do que tu mesma.
— Deveras! É difícil conhecer-me; mais difícil do que pensa. Eu mesma, sei o que às vezes
se passa em mim? E o motivo que me arrasta sem querer? Não repare nestas esquisitices! Ralhe
comigo, quando eu merecer; prometo corrigir-me.
— Era o meio de me tornar insuportável. Daqui a uma semana não me poderias aturar.
— Experimente!
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— Não; dizem que és muito caprichosa, e não há nada que eu respeite como os caprichos
de uma mulher. Fica o que tu és; somente sentiria que cometesses excessos como os de ontem.
— Já lhe dei um juramento!
— Acredito nele. Portanto não há necessidade de te humilhares diante de mim, que não
tenho direito de pedir-te contas de tua vida. Não te pergunto pelo passado. O que te peço são alguns
instantes de prazer. Quando te aborrecer, previne-me.
— O senhor nunca me há de aborrecer! Se este prazer que lhe dou vale alguma coisa, tome
dele quanto queira; pertence-lhe todo!
Davam seis horas. Lúcia pediu-me que jantasse com ela, e fê-lo com tal humildade e
timidez, que apesar dos meus escrúpulos aceitei para não mortificá-la. Enquanto ela vestia-se no
toucador, recostei-me no sofá e descontei quase uma hora do sono perdido na véspera. Abrindo os
olhos vi Lúcia reclinada sobre mim.
— Devias estar maçada por me ver dormir. Por que não me acordaste?
— Agora mesmo acabei de aprontar-me.
Estava encantadora com o seu roupão de seda cor de pérola ornado de grandes laços azuis,
cuja gola cruzando-se no seio deixava-lhe apenas o colo descoberto. Nos cabelos simplesmente
penteados, dois cactos que apenas começavam a abrir às primeiras sombras da noite. Mas tudo isso
era nada a par do brilho de seus olhos e do viço da pele fresca e suave, que tinha reflexos
luminosos.
— Foi para mim que te fizeste tão bonita?
— E para quem mais? disse com um acento queixoso. Estou a seu gosto?
— Como sempre.
— Pois vamos jantar.
Ela fez-me as honras de sua casa como uma verdadeira senhora, com o tato esquisito que
põe o hóspede à sua vontade, cercando-o contudo de mil atenções delicadas. O jantar foi sério. Ou
porque Lúcia nessa ocasião desejasse conservar a sua dignidade de dona de casa; ou porque a
presença dos criados a acanhasse, o fato é que não deixou nunca o tom ligeiramente cerimonioso
que havia tomado.
Depois de jantar sentamo-nos no terraço, onde tomamos café, e eu fumei o meu charuto, do
qual ela brincando roubou-me algumas fumaças com tal graça e prazer, que bem provavam ter
cultivado mais esse vício.
A noite estava bonita e estrelada, e o céu coalhado de nuvens que recortavam sobre o azul
as formas caprichosas. Lúcia tinha a alma poética; falava da natureza com o entusiasmo ingênuo
que dá a vida contemplativa àqueles que não conhecem os segredos da ciência; muitas vezes
fazia-me perguntas que me embaraçavam; outras cortava a frase colorida com um riso em que vertia
a sua fina ironia.
40
— Ali está a minha estrela! Olhe, sou eu! disse mostrando-me Lúcifer, que se elevava no
oriente, límpida e fulgurante.
Não pude deixar de sorrir-me.
— És muito linda no céu, sobretudo hoje que vestes um manto de tão puro azul; mas eu te
prefiro aqui junto de mim, Lúcia.
— Também eu; antes queria viver sempre neste cantinho da terra como agora,
respondeu-me tomando as mãos e olhando-me, do que no céu como ela brilhando para o mundo
inteiro.
Calou-se um instante.
— Se eu ainda lá estivesse, desceria agora para vir sentar-me aqui. Mas Lúcifer deixou no
céu a luz que perdeu para sempre.
Quando voltamos ao salão, já estava iluminado.
É preciso ter como Lúcia a beleza, a sedução e o espírito que enchem uma sala; a
mobilidade e a elegância que multiplicam uma mulher, como o prisma reproduz o raio do sol por
suas mil facetas; para assim consumir deliciosamente uma noite com as filigranas da galantaria
feminina. Em três horas, que voaram, quer saber o que fez essa mulher? Tocou e cantou com
sentimento, conversou com a sua graça habitual, representou-me tipos da comédia fluminense; fez a
sátira dos ridículos da época; recitou versos de Garrett, como o faria a Gabriela; brincou, saltou,
dançou; e por fim acabou tornando-me criança como ela, e obrigando-me a jogar prendas que eram
resgatadas com um beijo na face.
Às dez horas quis retirar-me. Lúcia suspendeu-se ao meu ouvido, e balbuciou muito baixo
uma súplica:
— Fique!
Um olhar eloqüente, raio voluptuoso que rompeu o enleio encantador de seu gesto,
disse-me quanto havia nessa palavra. O meio de resistir a semelhante pedido?
41
X
Recolhendo-me no dia seguinte, encontrei Sá que subia as escadas do hotel.
— Que fim levaste anteontem, que ninguém te viu mais?
— Voltei para casa.
— Com Lúcia, já se sabe! Ainda estás muito atrasado, Paulo. Tens o amor no meio de uma
claridade esplêndida, em volta de uma mesa bem servida, sobre macios tapetes; e preferes o amor
bucólico ao relento e sobre a relva!...
— Sou extremamente egoísta nesta matéria, meu amigo; só partilho o amor com a mulher
que o sente.
— São gostos; mas ficaste sabendo o que é Lúcia, e entretanto ela estava de mau humor.
Num dos seus bons dias, não tem que invejar às cortesãs gregas ou às messalinas romanas.
— Ela já contou-me tudo isso, Sá, respondi com impaciência.
— Pudera não! São os seus brasões de glória; e por isso previno-te. É uma mulher que só
pode ser apreciada de copo na mão e charuto na boca, depois de ter no estômago dois litros de
champanha pelo menos. Nessas ocasiões torna-se sublime! Fora disso é excêntrica, estonteada e
insuportável. Ninguém a compreende.
— Eu compreendo-a perfeitamente. É uma moça gasta para os prazeres; ainda jovem no
corpo, mas velha n'alma. Quando se atira a esses excessos de depravação, é estimulada pela
esperança vã de um gozo que lhe foge; atordoa-se, embriaga-se e esquece um momento; depois vem
a reação, o nojo das torpezas em que rojou, a irritabilidade de desejos que a devoram e que não
pode satisfazer; nestas ocasiões tem suas veleidades de arrependimento; a consciência solta ainda
um grito fraco; a cortesã revolta-se contra si mesma. Isso passa no dia seguinte. Eis o que é Lúcia;
daqui a algum tempo o hábito fará dela o mesmo que tem feito das outras: envelhecerá o corpo,
como já envelheceu a alma.
Sá me ouviu rindo à socapa e com malícia:
— Pois já que a compreendeste tão bem, explica-me isto.
E apresentou-me uma carta aberta, que ao tirar do sobrescrito deixou cair algumas notas do
banco. Era de Lúcia, e dizia:
“O senhor enganou-se. Sou eu que lhe devo, e tanto, que não lho poderei pagar nunca.”
Senti lendo esta carta um bem-estar inexprimível.
—Que dizes? perguntou Sá.
— Digo que ela fez o que devia.
— Talvez por conselho teu?
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— Afirmo-te que não sabia disto; e que soubesse, bem se importa Lúcia com os meus
conselhos. Seguiu o seu próprio impulso; arrependeu-se do que fez; e te agradece a lição. Nada mais
natural.
Sá olhou-me um instante:
— Somos ambos moços, Paulo; porém sou mais velho três anos de idade, e oito anos de
Rio de Janeiro. A corte é um país onde se envelhece depressa; por isso não te admires se falo como
um homem de cinqüenta anos. Queres te divertir: é justo, é mesmo necessário; porém não tomes
Lúcia ao sério.
— Não te entendo!
— Sabes que terrível coisa é uma cortesã, quando lhe vem o capricho de apaixonar-se por
um homem! Agarra-se a ele como os vermes, que roem o corpo dos pássaros, e não os deixam nem
mesmo depois de mortos. Como não tem amor, e não pode ter, como a sua inclinação é apenas uma
paixão de cabeça e uma excitação dos sentidos, orgulho de anjo decaído mesclado de sensualidade
brutal, não se importa de humilhar seu amante. Ao contrário sente um prazer novo, obrigando-o a
sacrificar-lhe a honra, a dignidade, o sossego, bens que ela não possui. São seus triunfos. Fá-lo
instrumento da vingança ridícula, que todas essas mulheres prosseguem surdamente contra a boa
sociedade, porque não as aplaude. O seu ciúme é fome apenas; se o amante tem alguma afeição
honesta, ela torna-se confidente de seus amores, encoraja-o, serve-o mesmo, para ter o gosto de
mais tarde disputar a presa. Então não há excesso que não cometa. Se for necessário aviltar o
homem, ela o fará, à semelhança desses torpes glutões que cospem no prato para que os outros não
se animem a tocá-lo.
— Mas a que vem este sermão, Sá? As minhas relações com Lúcia não têm nada que se
pareça com o teu romance; tu me conheces bem para saber que não há mulher no mundo capaz de
me atar à cauda de seu vestido, ainda quando fosse para elevar-me, quanto mais para arrastar-me na
lama.
— Quando essa mulher é Lúcia, o próprio José devia temer, Paulo.
— É perigosa assim? perguntei zombando.
— A mulher de Putifar foi uma pobre moça, devorada pela concupiscência, que se atirava
cega e alucinada nos braços do homem desejado. Era natural que a virtude chocada bruscamente
repelisse o vício, como um corpo elástico repele outro. Essa mulher não conhecia a arte da tentação.
Se ardendo em febre sensual, quando estendia a perna nua ou descobria o seio a José, tivesse a força
de olhá-lo como ao cão importuno que gira em torno do festim a quem o conviva repele com o pé,
não se passaria muito tempo sem que o animal exasperado se lançasse sobre o osso, que o tentava,
para devorá-lo, embora soubesse que lhe atravessaria a garganta.
— Mas eu não sou José, respondi sorrindo; e prefiro a carne que me dão, ao osso, que me
recusam.
— Por isso mesmo! Bebeste o primeiro trago do vinho; provaste uma vez do fruto
proibido. Já conheces o amor dessa mulher: é um gozo tão agudo e incisivo que não sabes se é dor
ou delícia; não sabes se te revolves entre gelo ou no meio das chamas. Parece que dos seus lábios
borbulham lavas em bebidas em mel; que o ligeiro buço que lhe cobre a pele acetinada se eriça,
como espinhos de rosa através das pétalas macias; que o seu dente de pérola te dilacera as carnes
43
deixando bálsamo nas feridas. Parece enfim que essa mulher te sufoca nos seus braços, te devora e
absorve para cuspir-te imediatamente e com asco nos beijos que atira-te à face!
— É verdade! disse eu lembrando-me, mas já a senti uma vez sem esse sabor agro e
corrosivo.
— Porque teu paladar se vai habituando. Só conheci uma criatura assim e não era uma
cortesã... Mas não se trata disto, atalhou Sá como repelindo uma recordação importuna. Quando
supuseres que o tédio te invade, procurarás debalde o prazer; a mulher a mais provocante, esteja ela
possessa de vinho e de amor, te parecerá morta. Eis o perigo: terás a força de resistir?
— Tu não resististe?
— Com esforço; e entretanto quando a conheci, há um ano, já tinha feito todas as minhas
provas; não creio que possas dizer o mesmo.
— Mas, se Lúcia é essa mulher esquisita, insuportável e caprichosa, ela mesma se
incumbirá de curar-me.
— E se eu te disser que é essa versatilidade e inconstância de humor que a torna mais
excitante! Acrescenta que Lúcia tem vontade de apaixonar-se por ti.
— Oh! essa é galante! Como fizeste semelhante descoberta?
— Esta carta! O que é que Lúcia me pode dever daquela ceia, senão o teu conhecimento?
— Eu já a conhecia.
— De vista.
— Na frase da escritura, Sá.
— Ah!
— Estive em sua casa, quinta-feira.
— Bem: cumpri o meu dever de amigo; cumpre o teu de homem sensato. Adeus.
Voltei de tarde à casa de Lúcia; encontrei na sala uma das nossas companheiras de ceia.
Lúcia vendo-me entrar, ergueu-se bruscamente.
— Desculpa, Laura, amanhã passarei por tua casa, e então conversaremos; agora não
posso.
— Eu te deixo, mas acredita que não esquecerei nunca o favor que me fizeste.
— Não vale a pena. Adeus.
— Hei de lembrar-me sempre que sem ti, não teria amanhã onde dormir. É pequeno
serviço?
— Não vês que me estás aborrecendo, Laura! disse Lúcia batendo o pé com impaciência.
44
— Está bem, não quero que te arrependas do benefício.
— Certamente me farás arrepender. Sabes que eu não gosto que me contrariem. Adeus.
Laura fitou nela um olhar surpreso, no qual passou rapidamente a sombra de um
ressentimento; mas acabou rindo-se, e saiu depois de dizer estas palavras:
— Tu me expulsas de tua casa? Não tenho o direito de me ofender; acabas de pagar o
aluguel da minha.
A porta fechada por Lúcia bateu com tanta força que as vidraças das janelas estremeceram.
Tinha assistido de parte a esse pequeno e vivo diálogo, e compreendera tudo. A alusão que
Lúcia fizera na noite da ceia realizava-se; Laura recorrera a ela numa dificuldade, e acabava de
receber o benefício da mão que insultara. Inda mais, sem delicadeza para compreender o motivo da
contrariedade de Lúcia que desejava ocultar de mim a sua generosidade, saía maculando com uma
ironia grosseira a gratidão que exprimia.
O coração de uma me apareceu vil e torpe, quanto a alma da outra se mostrava nobre,
elevada e rica de sensibilidade.
Lúcia deu algumas voltas pela sala, enquanto dominava a sua agitação, e caminhou para
mim risonha, meiga, e ainda resplandecente das cores vivas que uma cólera passageira abrira em
suas faces, como as tempestades rápidas, que atravessam a atmosfera, deixando a natureza mais
brilhante e viçosa.
— Agora é meu até?... e a última palavra desfez-se num sorriso celeste. Até amanhã! E
meu só.
Inclinou a fronte, que eu beijei.
— Por que estavas há pouco tão zangada?
— Já não me lembro! respondeu com faceirice, pousando a unha rosada no lugar que os
meus lábios tinham tocado. Apagou tudo! Estas horas que acabam de passar, não contam na minha
vida. Dormi e sonhei. Foi o senhor que me acordou; e eu acordei rindo-me. Não viu?
— Quiseste ocultar-me; mas entendi tudo. Acabavas de fazer um benefício à mulher que te
ofendeu.
— Ela não teve culpa! Foi um despeito porque não lhe deram a preferência: eu faria o
mesmo. Demais, não era justo o que ela disse!
— Em todo o caso é preciso muita baixeza para pedir-se um favor à pessoa a quem se
dirigiu um insulto.
— Tinha pedido antes; e nem foi o que o senhor pensa.
— Ah! Veio exigir o cumprimento da promessa feita.
— Não foi assim, não senhor. Não exigiu coisa alguma.
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— E que fazia ela aqui quando eu cheguei?
— Estava me aborrecendo.
— Estava te agradecendo.
— É o mesmo.
— E por que te agradecia? Porque lhe tinhas dado o que veio pedir; o dinheiro para pagar o
aluguel da casa.
— Que teimoso! Se estou lhe dizendo que ela não me veio pedir nada.
— Percebo; tu lhe ofereceste espontaneamente, e ela aceitou, porque vindo aqui não tinha
outro fim.
— Meu Deus! disse com um gracioso enfado, quando eu estou junto dele, não me lembro
de outra coisa; e ele esquece-se de mim para ocupar-se com Laura! Quer saber tudo? pois eu lhe
digo. Fui eu quem lhe mandou ontem esse dinheiro, uma ninharia; e ela veio aqui aborrecer-me e
contar as suas desgraças. Está contente?
— Não; fizeste uma esmola, é generoso; quiseste ocultá-la, é modesto; mas esqueceste que
eu devia ter a minha parte nessa boa ação; e não te perdôo.
— Assim nunca remiria os meus pecados! E o que eu fiz, não é tal uma boa ação; quando
chegar a minha vez de precisar, ela me dará.
— Ainda!... Deixarás de pedir-me a mim para pedir a ela?
— Disse-o sem sentir! Não precisarei de nada; de nada senão que me venha ver! Isso, fique
certo que lhe pedirei todos os dias.
Tomou-me a cabeça, e reclinando-a sobre o ombro, cobriu-me de carícias.
— Hão de lhe ter dito já que sou muito avarenta. Não lhe enganaram, não! Sou; gosto de
esconder assim o meu tesouro; de fazer tinir docemente as minhas moedas; de contá-las uma a uma
até perder a soma; de embriagar-me como agora na contemplação de meu ouro, e estremecer só
com a idéia de perdê-lo!
Cada uma dessas palavras caía através dos beijos amiudados que me sufocavam.
— Dizem que a avareza é um vício; mas desse não peço perdão a Deus, que me deu o meu
tesouro, mesmo para que o escondesse do mundo, e não expusesse a maus olhados. Portanto fique
sabendo, não há de vir à minha casa todos os dias como pensa!
Quis levantar-me despeitado. Ela obrigou-me a sentar; e saltando ligeira sobre os meus
joelhos, desfolhou no meu rosto uma risada fresca e argentina.
— Não, senhor; não há de vir todos os dias! Ah! supunha ?...
—Tinha-me enganado; não será a última vez.
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— Já está me querendo mal; pois tenha paciência. Só há de entrar aqui duas vezes por
semana: na segunda e na quinta-feira.
Ia interrompê-la recusando; ela tapou-me a boca.
— E há de sair nos mesmos dias; porém em vez de entrar de manhã e sair de tarde, entrará
de tarde e sairá de manhã. Não lhe agrada?
— Então à exceção desses dois dias toda a semana é minha? disse não me cabendo de
contente.
— Sua, não senhor, minha. Deixo-lhe dois dias para ver seus amigos...E não acha que é
muito? Bastava um!
Ficou séria de repente:
— Assim ninguém desconfiará; não saberão onde está. Se lhe perguntarem, não o diga,
nem mesmo ao Sá. Ele seria o primeiro que me julgaria capaz de querer fazer com o senhor o que
tantas fazem com o homem que preferem. Gostam de mostrá-lo no teatro, na rua, em toda parte!
Lúcia, como vê, parecia adivinhar o que me tinham dito o Cunha e Sá para desmenti-los
completamente. Entretanto, quando eu devia admirar a nobreza dessa alma, quando a mulher que
acusavam de cúpida e avara, afastava delicadamente uma questão mesquinha, entregando a sua vida
a um homem que mal conhecia, cujo caráter e posição ignorava, o meu orgulho me inspirava uma
sórdida e estúpida lembrança. Quis responder a tanta dedicação mostrando-me também franco e
liberal; mas não refleti que eu era generoso de dinheiro apenas, enquanto que ela o era de sua
pessoa e liberdade, talvez de sua afeição.
— Bem, Lúcia, tu queres que eu viva quase em tua casa. Mas é preciso saber o que serei eu
dela!
Olhou-me com expressão que mostrava ter lido no meu pensamento:
— O mesmo que de mim: dono e senhor.
— Então sabes quais são os meus direitos? E para começar, a carta que escrevestes ao Sá,
assim como o favor que fizeste à Laura, me competem. O que te pertence, é unicamente o
pensamento.
— Ele mostrou-lhe?
— Mostrou-me; e a propósito, o que é que lhe deves, que nunca lhe poderás pagar?
— O quê?...Esta sua generosidade! Acha que é pouco?
Conheci que a tinha ofendido; e pedi-lhe um perdão, que já me estava concedido.
47
XI
Encontram-se nas florestas do Brasil árvores preciosas, que, feridas, vertem em lágrimas o
bálsamo que encerram.
Assim era, quando uma palavra involuntária da minha parte ofendia-lhe a suscetibilidade e
banhava-lhe o rosto do pranto, que Lúcia me revelava toda a riqueza da sua alma.
As nossas relações duravam havia um mês; apenas algumas ligeiras nuvens, das que
achamalotam o azul da atmosfera nas tardes calmosas, toldaram por vezes o nosso céu risonho.
Mas, como brisa suave, o hálito de Lúcia as delgaçava logo, e elas se desvaneciam com um sorriso
doce e carinhoso. Era eu que desastradamente acumulava sobre o nosso horizonte esses vapores do
meu mau humor; e era ela que os expelia, não perdoando, mas pedindo perdão da ofensa que
recebera.
A questão econômica, questão delicada em que se chocavam o seu nobre desinteresse e a
minha dignidade, havia sido felizmente resolvida.
Tinha visto Lúcia esconder num vaso do toucador a chave da gaveta onde guardava o seu
dinheiro. Cometi então a indiscrição de abrir uma vez por semana essa gaveta, e deitar a soma que
comportava com a minha fortuna e com o luxo em que ela vivia.
A primeira vez que isso sucedeu, foi na manhã seguinte à visita de Sá; todo o dia se passou
sem a menor alteração, o que me tranqüilizou, porque estava firmemente resolvido a não ceder. Já
por diversas vezes Lúcia tinha aberto a gaveta; era natural que houvesse percebido; e contudo não
me dissera uma palavra.
À tarde porém pareceu-me ouvir ao longe rugir a tempestade.
— Mandei comprar um camarote!
— Se querias ir ao teatro, por que recusaste o que te ofereci?
— Estou tão rica hoje! Não sei o que hei de fazer do dinheiro, respondeu sorrindo.
Veio nesse sorriso um espinho que entrou-me n'alma; olhei-a fixamente, porém já o seu
rosto estava calmo e sereno. A consciência que eu tinha, de não ser bastante rico para essa mulher,
pungia-me tanto e a cada momento, que à menor palavra dúbia, ao menor gesto equívoco, os meus
brios se revoltavam. Farejava uma ironia até no seu próprio desinteresse, que podia ser inspirado
pelo conhecimento de minha pobreza.
Mas essa foi a última ocasião em que Lúcia deu azo à minha desconfiança; desde então
quando eu ia à gaveta do toucador, por mais que o disfarçasse, ela adivinhava imediatamente, não
sei por que secreta revelação; e mal eu me sentava ao seu lado dizia-me com uma mansuetude e
uma gratidão sublime, apertando a minha mão ao seio:
— Obrigada!
Como explicar essa rápida e extraordinária mudança? A mulher que dois dias antes se
indignava com um oferecimento delicadamente feito, agora não só recebia o serviço oferecido, mas
o agradecia com tanta efusão e reconhecimento! Teria nesse momento grande e urgente necessidade
de dinheiro, ou a sua primeira recusa não fora sincera?
48
Compreenda, se pode; quanto a mim, expliquei as repugnâncias de Lúcia por um resto de
pudor; e regozijei-me com as suas novas disposições, que vinham poupar-nos futuros dissabores.
Desde que os meus escrúpulos desapareciam com a posição que tomara, não havia motivo
para deixar de beber a longo trago na taça do prazer, que Lúcia me apresentava sorrindo. Passava
todo o meu tempo em sua casa e ao seu lado; conversávamos, ríamos, colhíamos as flores que a
mocidade espargia em nosso caminho; e assim corriam as horas tecidas a fio de ouro e púrpura.
Às vezes lia para ela ouvir algum romance, ou a Bíblia, que era o seu livro favorito. Lúcia
conservava de tempos passados o hábito da leitura e do estudo; raro era o dia em que não se distraía
uma hora pelo menos com o primeiro livro que lhe caía nas mãos. Dessas leituras rápidas e sem
método provinha a profusão de noções variadas e imperfeitos que ela adquirira e se revelavam na
sua conversação. Às segundas e quintas-feiras eu saía; mas apenas tinha comprado algumas
galantarias que lhe destinava, já os pés me pruriam para tomar o caminho de sua casa. Depois de
três ou quatro horas inutilmente desperdiçadas, voltava ao meu berço de rosas; e por mais cedo que
chegasse, sempre chegava tarde para ela, e para mim.
Lúcia tinha a poesia da voluptuosidade.
“Fazer nascer um desejo, nutri-lo, desenvolvê-lo, engrandecê-lo, irritá-lo, afinal
satisfazê-lo, diz Balzac, é um poema completo.” Ela compunha esses poemas divinos com um beijo,
um olhar, um sorriso, um gesto. Que de harmonias sublimes não arrancava da lira do amor com
aquelas notas de sua clave voluptuosa! E a sua beleza admirável, como a sua graça infinita, davam
sempre àqueles hinos do prazer uns retoques originais.
Entretanto devo dizer-lhe: nunca mais admirei essa mimosa criatura no esplendor da sua
beleza. A cortesã que se despira friamente aos olhos de um desconhecido, em plena luz do dia ou na
brilhante claridade de um salão, não se entregava mais senão coberta de seus ligeiros véus: não
havia súplicas, nem rogos que os fizesse cair. Às vezes e quantas, ela chegava-se para mim corando,
e começava a olhar-me com os seus grandes olhos negros, tão afogados em languidez, que eu
percebia imediatamente o turbilhão de desejos que se agitava naquele seio ofegante. E quando a
tomava nos meus braços, debatia-se esgarçando com prazer as rendas e a escumilha, até que,
rendida na luta que provocava, caía trêmula e palpitante no meu peito.
Apesar de minhas instâncias, Lúcia recusava ir ao teatro, sair a passeio, ou gozar de algum
dos poucos divertimentos que lhe oferecia esta insípida cidade.
— Não sei quanto tempo durará a minha felicidade; e não quero esperdiçá-la.
— Eu te acompanharei!
— Nem eu devo aceitar esse sacrifício que o comprometeria; nem que o aceitasse, me
podia divertir. Não estaríamos sós!
Eis a situação em que nos achávamos quando uma manhã, passando pelo hotel, achei uma
carta de convite para uma partida. O Sr. R..., a quem fui recomendado por amigos de minha
província, pedia-me encarecidamente que ao menos no dia dos anos de sua senhora lhe desse o
prazer de ver-me em sua casa. Realmente estava em falta para com a família, que apenas visitara
com um cartão, e à qual devia muitas finezas! Era ocasião de reparar a minha descortesia.
Mostrei a carta a Lúcia:
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— Deve ir, respondeu adivinhando o meu pensamento!
— Entretanto tu renuncias aos teus divertimentos por minha causa. Por que não farei o
mesmo?
— Essa partida não é só um divertimento para o senhor, é também um dever.
— Assim queres que vá me divertir sem ti?
— Não o posso acompanhar! disse ela com uma expressão que significava — um abismo
nos separa.
Fui à partida, que esteve brilhante. Lá a encontrei, à senhora, e à sua filha, anjo que ainda
não tinha batido as asas brancas, deixando viúvas a velhice e a infância de quem tanto amara neste
mundo. Havia moças lindas e elegantes, que tornavam a dança verdadeiro prazer, e não sacrifício
penoso, como sucede na maior parte desses saraus, em que o convidado é apenas um instrumento de
quadrilha, compasso coreográfico, que se transforma na hora da ceia em máquina gastronômica.
A Sr.ª R..., com uma amabilidade que eu decerto não merecia, esmerou-se em tornar
agradáveis as horas que passei em sua casa: apresentou-me a quanto havia ali de distinto pela
beleza, pela inteligência e pela virtude; e com o tato fino da mulher de salão poupava-me as
banalidades cerimoniosas das apresentações, fazendo-me entrar logo na conversação que animava
com a sua graça e os seus repentes felizes. A filha, gentil moça de 17 anos, fez-me a honra de uma
contradança e de algumas voltas de valsa.
Confesso que fiquei fazendo melhor idéia das reuniões dançantes da sociedade fluminense.
Pouco tempo antes de retirar-me, vi Sá que me acenava de uma janela da sala de jogo,
onde se abrigara para fumar. Logo ao entrar tinha-lhe falado; mas evitara a sua conversa, com
receio de que me fizesse perguntas sobre Lúcia; sentia remorder-me a consciência; e pouco disposto
a aceitar os seus conselhos, previa que eles me haviam de irritar tanto mais, quanto seriam
prudentes e razoáveis.
— Desculpa-me: vou dançar.
— A quadrilha ainda se demora, bem sabes; mas queres me escapar!
— Que idéia!
— Queres escapar-te, sim. Cuidas que sou desses homens que perseguem os seus amigos
de conselhos que nada lhes custam, porque nem sequer dão o exemplo; e com isso julgam-se quites
de todos os deveres da amizade! Estás enganado, Paulo. Disse-te uma vez a minha opinião sobre as
tuas relações com Lúcia; fiz o que me cumpria: o resto te pertence.
— Estava tão longe de pensar nisso agora! Como tens achado a partida? Há muito tempo
não me divirto tanto!... Rostos encantadores, toilettes de gosto, excelente serviço; nada falta!
— Deixa estes elogios aos folhetinistas em cata de novidades. Compreendes que não te
chamei para ouvir o teu juízo sobre a reunião do Sr. R...
— E para que me chamaste então?
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— Para pedir-te um conselho.
— A mim?
— De que te admiras? Porque não os dou, segue-se que não posso pedi-los? Ao contrário!
— Vejamos que negócio importante é esse que exige o meu voto!
— Julgas que um amigo deva referir ao outro tudo o que se diz a seu respeito? Vamos, a
tua opinião franca!
— Julgo que é o maior serviço que possa prestar a amizade.
— Bem. Ouve então o que dizem de ti.
— Para quê? Não dou peso à maledicência, Sá.
— Pode ser que tenhas razão; mas ouve primeiro; depois riremos juntos dessas parvoíces.
Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de gente que se ocupa mais com a vida dos outros, do que
com a sua própria; e em parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm a alma oca
e vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna tens, quanto ganhas, onde moras e como vives.
— É fácil saber; não tenho que ocultar, mercê de Deus.
— Estou convencido que poderias habitar a casa de vidro de Catão; mas infelizmente não a
habitas; e portanto o mundo não vê justamente o que a tua modéstia esconde por detrás das paredes,
isto é, o lado nobre e honroso da tua vida. O resto está patente.
— Mas ainda uma vez, Sá, o que pretendes com isso? Que me importa o que pensam a
meu respeito? Não tenho reputação a perder.
— Mas tens reputação a ganhar. És amante de Lúcia, há um mês; e eu te conheço, sei que
estás te sacrificando. Entretanto, como Lúcia não aparece mais no teatro, não roda no carro mais
rico, e já não esmaga as outras com o seu luxo; como a Rua do Ouvidor não lhe envia diariamente o
vestido de melhor gosto, a jóia mais custosa, e as últimas novidades da moda; sabes o que se pensa
e o que se diz? Que estás sacrificando Lúcia... que estás vivendo à sua custa!
O primeiro ímpeto de minha indignação caiu sobre Sá, em quem se encarnava o insulto
vago e anônimo; cometia um excesso, se o seu olhar franco e leal não me fizesse entrar em mim.
— Então! Não te ris dessa estúpida calúnia?... Tomas isto ao sério?
— Dize-me o nome de um só dos infames que se ocupam com a minha vida. O teu dever,
já que assim o chamaste, o exige, e eu te peço!
— O nome?... É o mundo, a gente, a sociedade! Vai tomar-lhe satisfações.
— Mas tu ouviste de um homem?
— Que ouviu de outro e outro. Procura numa árvore a folha que gerou e nutriu a vespa que
te morde?
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Sá tinha razão. Senti a impotência do homem contra a calúnia impalpável que esvoaça e
zune e ferroa como a vespa, e escapa nas asas à raiva e desespero da vítima É a fábula do leão e do
mosquito. Mas o que então se passou em mim lhe parecerá incrível: a minha cólera precisava
desabafar-se contra alguém, e na impossibilidade de dar um corpo àquela injúria atroz, levei a
ingratidão até encarná-la em Lúcia, causa inocente do que sucedia.
Ela tinha razão quando temia que as nossas relações fossem conhecidas, e quando fazia
tudo por escondê-las, como se escondem à sombra as flores delicadas que o vento fresco ou o sol
ardente crestam e matam.
Saí bem decidido a pôr um termo à situação vergonhosa e humilhante em que me achava
colocado. As palavras de Sá me queimavam os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que
esbanjava a minha pequena fortuna por ela! Mas as calúnias tinham razão em um ponto; não exibia
a minha amante como um traste de luxo, ou um manequim da moda; roubava o bem que lhes
pertencia, visto que não era milionário para ter o direito de possuí-lo exclusivamente.
Não me dei ao trabalho de procurar o meu tílburi e parti a pé; precisava agitar-me.
Um vulto de mulher passou rapidamente. Ao voltar a esquina, encontrei-o parado.
Chegou-se a mim e ergueu o véu. Reconheci Lúcia.
— Divertiu-se muito? perguntou-me com interesse.
— Oh, muito; nem fazes idéia!
— Eu vi! disse timidamente.
Não compreendi.
— O que viste?
— Vi-o dançar, passear na sala com as moças; acompanhei-o de longe toda a noite. Estava
defronte, escondida por detrás das cortinas.
Havia em face da casa do Sr. R... um miserável botequim, onde ela alugara um quarto a
fim de passar a noite vendo-me. Era sublime de delicadeza, e contudo esta prova de afeição, que em
outra circunstância me comoveria, pareceu-me uma perseguição insuportável, e esteve quase
fazendo transbordar a minha cólera concentrada.
— Não gosto nada destas extravagâncias, que dão em resultado comprometer-me.
— Ninguém me conhece ali; e não podem adivinhar o que me trouxe. Agora mesmo, se a
rua não estivesse deserta, me animaria a falar-lhe? Fique certo de uma coisa: não há nada neste
mundo que eu deseje tanto como vê-lo; e me privaria desse prazer se ele pudesse trazer-lhe um
dissabor.
— Com que fim vieste a essa casa? Não posso sair uma noite sem que me veja espiado!
Hás de confessar que não é muito agradável; se pensas que é este o meio de me prender, estás
completamente enganada. Aprecio muito a minha liberdade; deves te lembrar que entre nós não
existem compromissos.
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— Nem um decerto!
— Portanto não temos que espiar-nos um ao outro.
— Perdoe-me: fiz mal, não o farei nunca mais.
Calei-me.
— Diga-me ao menos que não está agastado!
— Boa-noite!
Lúcia precipitou-se para impedir-me o passo; vi um instante brilhar na sombra o seu olhar
cintilante, mas logo deixou pender os braços, curvando a cabeça:
— O coração me adivinhava! O Sá!...
Continuei o meu caminho.
Era a primeira noite, depois de um mês, que passava no hotel, e longe de Lúcia; como me
achei só no deserto da nova existência que ia começar!
53
XII
Meio-dia a dar no sino das torres, e eu entrando em casa de Lúcia.
Tinha refletido: essa amizade não podia continuar; se havia de desatar mais tarde, depois
de me ter feito curtir mil dissabores, bom era que cessasse desde logo. Não julgue porém que estava
resolvido a separar-me por uma vez de Lúcia; minha coragem não chegava a tanto. O que eu
desejava era demitir de mim um título que me esmagava na minha pobreza, o título de amante
exclusivo da mais elegante e mais bonita cortesã do Rio de Janeiro.
Ela recebeu-me com brandura. Tinha os olhos rubros e pisados de lágrimas; apertando
minha mão, beijou-a. Que pretendia ela exprimir com esse movimento! Seria a imagem viva da
humilde fidelidade do cão, afagando a mão que o acaba de castigar?
Estivemos muito tempo sem trocar palavra.
Enfim Lúcia fez um esforço, sorriu como se nada houvesse passado, e veio sentar-se nos
meus joelhos, acariciando-me com a ternura e a graciosa volubilidade que ela tinha quando o júbilo
lhe transbordava d'alma. Aproveitei o momento para alijar o peso que desde a véspera me
acabrunhava.
— Sabes que eu não sou rico, Lúcia!
Seu olhar luminoso penetrou-me até os seios d’alma para arrancar o pensamento que
inspirava essas palavras; respondeu com um pálido sorriso:
— Pensava ao contrário que era muito rico!
Ela mentia!
— Pois pensaste mal. Sou pobre, e não posso sustentar o luxo de uma mulher como tu.
— Acha pouco o que me tem dado!
— O que dei não vale a pena de ser lembrado. Falemos do que te devia dar, e não pude,
porque não tinha. Neste mês que se passou, a tua vida não foi tão brilhante como era antes.
— Porque eu não quis, e não porque me faltasse coisa alguma. Nunca me achei tão rica
como agora.
— Não tens sido vista nos teatros e passeios; já não tens um carro; não és enfim a mulher
do tom que eu ainda conheci!
— Aborreci-me de tudo isto!
— Não te podes aborrecer sem que o mundo repare!
— Como! Não sou senhora de viver a meu modo, desde que com isso não faço mal a
ninguém? Se apareço, é um escândalo; se fico no meu canto, ainda se ocupam comigo.
— Que queres! Há certas vidas que não se pertencem, mas à sociedade onde existem. Tu és
uma celebridade pela beleza, como outras o são pelo talento e pela posição. O público, em troca do
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favor e admiração de que cerca os seus ídolos, pede-lhes conta de todas as suas ações. Quer saber
por que agora andas tão retirada; e não acha senão um motivo.
— Qual? perguntou Lúcia com ansiedade.
— Supõe que eu te sacrifico aos meus ciúmes; e não me perdoa, porque não sou bastante
rico para ter semelhantes caprichos.
— É isso que o incomoda! Meu Deus! Fique descansado: terei carro, aparecerei como
dantes! Hoje mesmo!... Verá! Não sabe quanto me custa esse sacrifício; mas um só beijo me paga
com usura!
Estalou o lábio entre os meus.
— Precisava dele para me dar coragem; agora sinto me forte.
— Aonde vais? perguntei retendo-a.
— Vou mandar a cocheira ver o meu carro; escrever à Gudin que me faça uma dúzia de
vestidos os mais ricos; dizer ao caixeiro do Wallerstein que me traga para escolher o que ele tem de
melhor em modas chegadas ultimamente! É verdade, esquecia-me de mandar tomar uma assinatura
no teatro lírico, e encomendar uma nova parelha de cavalos. A minha caleça já está usada; preciso
trocá-la por uma vitória, e renovar o fardamento dos criados. Até à noite tenho tempo para tudo. O
Jacinto se incumbirá de uma parte das comissões.
Olhei para Lúcia; ou está louca, ou zomba de mim, foi a minha primeira idéia, ouvindo a
sem-cerimônia e o desplante com que ela decretava um orçamento de despesa que faria estremecer
o mais pródigo financeiro.
— Espera, Lúcia!
— Ainda não é bastante? Que hei de fazer mais? disse com um gesto de cômico desespero.
Ah! Mandarei arranjar de novo a minha casa, e darei um baile! Que diz!
— Farás o que for do teu gosto!
— Do meu!...
— Goza da tua mocidade, é justo: tu podes e deves fazer; mas como só eu venho à tua casa
e todo o mundo sabe que não sou milionário, compreendes que, se isto continuasse, suspeitariam,
diriam mesmo, se já não disseram, que vivo à tua custa!
Lúcia ficou lívida; tinha compreendido.
— Então não posso dar-me a quem for de minha vontade?
— Quem diz isso? Eu é que não te posso aceitar por semelhante preço. À custa da honra...
é muito caro, Lúcia!
— Ah! esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro
da praça, que não pode recusar quem chega. Estes objetos, este luxo, que comprei muito caro
também, porque me custaram vergonha e humilhação, nada disto é meu. Se quisesse dá-los,
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roubaria aos meus amantes presentes e futuros; aquele que os aceitasse seria meu cúmplice.
Esqueci, que, para ter o direito de vender o meu corpo, perdi a liberdade de dá-lo a quem me
aprouver! O mundo é lógico! Aplaudia-me se eu reduzisse à miséria a família de algum libertino;
era justo que pateasse se eu tivesse a loucura de arruinar-me, e por um homem pobre! Enquanto
abrir a mão para receber o salário, contando os meus beijos pelo número das notas do banco, ou
medindo o fogo das minhas carícias pelo peso do ouro; enquanto ostentar a impudência da cortesã e
fizer timbre da minha infâmia, um homem honesto pode rolar-se nos meus braços sem que a mais
leve nódoa manche a sua honra; mas se pedir-lhe que me aceite, se lhe suplicar a esmola de um
pouco de afeição, oh! então o meu contato será como a lepra para a sua dignidade e a sua reputação.
Todo o homem honesto deve repelir-me!
Impetuosas como a torrente que borbota em cachões, ardentes como as bolhas d'água em
plena ebulição, essas palavras se precipitavam dos lábios de Lúcia, em tropel e quase sem nexo. Às
vezes de tão rápidas que vinham lhe tomavam a respiração, e parecia que a estrangulavam. Até que
por fim um soluço cortou-lhe a voz; o seio ofegou como se o coração lhe quisesse saltar com o
último grito de indignação de sua alma ofendida.
Que responder àquela lógica inflexível da paixão fazendo justiça aos prejuízos sociais?
Nada. Calei-me, irritado contra os estímulos nobres que recebemos na infância e não nos permitem
praticar cientemente um ato de que devamos corar.
— Tu me fazes arrepender da minha franqueza, Lúcia! disse passado um momento.
Preferias que deixasse de ver-te?
— Não! Antes assim! O senhor quer!... Será feita a sua vontade! Terei amantes!
Saiu arrebatadamente e fechou-se no toucador.
Voltei, refletindo se o que tinha feito era realmente uma ação digna, ou uma refinada
covardia; servilismo à inveja e malevolência social, que se decora tantas vezes com o pomposo
nome de opinião pública.
Às três horas da tarde passando pela Rua do Ouvidor vi Lúcia na casa do Desmarais,
cercada por uma grande roda, na qual eu distingui logo o Sr. Couto e o Cunha.
Lúcia estava rutilante de beleza; a sua formosura tinha nesse momento uma ardentia
fosforescente que eu atribuí à irritação nervosa da manhã. O orgulho e o desprezo vertiam-Ihe de
todos os poros, nos olhos, nos lábios, nas faces e no porte desenvolto. Ela flutuava numa atmosfera
maléfica para o coração, que, entrando naquela zona abrasada, sentia-se asfixiar. A roda elegante
festejava o astro que surgia, depois do seu eclipse passageiro, mais que nunca brilhante.
Atirando a réplica viva e incisiva a todos os adoradores que a cortejavam; escarnecendo da
fineza, e fazendo ressaltar a zombaria contra o que a lançara, Lúcia, com a mesma liberdade que
teria em sua casa, continuava a escolher na grande exposição de objetos de fantasia que cobria os
balcões.
Que sentimento me obrigava a parar na loja para seguir com os olhos essa mulher, à posse
exclusiva da qual eu acabava de renunciar? Que motivo estranho, vendo-a agora cercada de
apaixonados, me fazia sofrer, a mim que não havia duas horas tinha assistido friamente à explosão
violenta da sua cólera?
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Lúcia me viu, porém não me deu atenção. Dirigiu-se ao Couto; trocando com ele algumas
palavras em segredo, voltou para o caixeiro e declarou que comprava os objetos apartados, cujo
preço lhe seria enviado no dia seguinte.
Vendo gesto significativo do Couto ao dono da loja, como eu, todas as pessoas presentes
ficaram persuadidas que da bolsa do velho saía o dinheiro que ela acabava de atirar a mancheias de
uma a outra ponta da Rua do Ouvidor.
Felizmente para mim, que já não me podia conter, o suplício terminou. Ela retirava-se.
Passando junto de mim cortejou-me, e disse em vez baixa:
— Está satisfeito?
O sorriso em que ela envolveu estas palavras, caiu, se me posso assim exprimir, como a
dobra de uma mortalha; tal foi a súbita lividez que lhe cobriu o rosto, e o desanimo que abateu o seu
corpo.
O Couto apressou-se a oferecer-lhe a mão para ajudá-la a entrar no carro.
— Até logo! disse-lhe ela bem alto.
Podia-me restar a menor dúvida? Lúcia era amante do Couto.
Enquanto acompanhava com os olhos a cortesã desprezível que se balançava lubricitante
no seu novo carro, insultando com o luxo desmedido as senhoras honestas que passavam a pé, sabe
de que me lembrei? Não foi da ceia em casa de Sá, nem do mês que acabava de passar; foi
unicamente da suave aparição da Rua das Mangueiras no dia da minha chegada. São extravagâncias
da memória. Quem conhece o fio misterioso que leva o pensamento através do labirinto do passado
a uma lembrança remota?
— Rei morto, rei posto! disse-me o Cunha, que chegara à porta para ver Lúcia entrar no
carro.
— Não sei a que se refere!
— Referia-me, Sr. Silva, continuou apontando para o carro que ainda aparecia, àquele
trono de sedas e veludos que vagou esta manhã, e que uma hora depois já estava preenchido.
— Enganou-se, Sr. Cunha, respondi no mesmo tom de gracejo, fui apenas regente durante
uma curta vacância.
— Pois não é isso o que se dizia.
— O que se dizia então? repliquei tornando-me sério, porque as palavras de Sá me
acudiram ao pensamento.
— Dizia-se que o senhor mudara o sistema de governo daquele estado, e sucedera na
qualidade de autocrata aos reis constitucionais, como eu tive a honra de sê-lo em certo tempo.
— O que entende por autocrata, Sr. Cunha?
— Perdão: vejo que toma ao sério um gracejo. Mudemos de assunto; não desejo ofendê-lo.
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O Couto, que nos ouvia de princípio, interveio na conversa.
— A significação da palavra é bem clara, Sr. Silva, disse com o seu fátuo sorriso.
— Se o Sr. Couto quisesse fazer-me o favor de explicá-la Tenho a inteligência embotada.
O velho calou-se com visível embaraço. Continuei pesando as minhas palavras:
— O senhor quer talvez lembrar-me que os autocratas têm o costume de tiranizar os povos
e vexá-los de imposições; razão por que os povos, quando os expulsam, se tornam excessivamente
exigentes para com os truões que lhes sucedem. Não é isto? Diga-me por obséquio: não faz idéia da
ansiedade com que procuro desde ontem um homem que tenha a coragem de repetir-mo em face!
— Ora, o senhor está brincando!
E o Sr. Couto fez-me uma profunda cortesia, e saiu empertigando-se mais que de costume.
Voltei-me para o Cunha.
— Bem dada lição! disse estendendo-me a mão.
— Decididamente não havia meio de brigar; o homem que eu procurava fugia-me como
uma sombra.
58
XIII
À noite, quando dei por mim, subia as escadas de Lúcia. Se alguém me perguntasse o que ia fazer, ficaria
bem embaraçado para responder e bem admirado da pergunta.
Tinha passado o resto do dia a atordoar-me, a fazer esforços inúteis para expelir da idéia
uma lembrança que me afligia; à noite não pude resistir: senti uma necessidade invencível de ver
aquela mulher, que eu já aborrecia.
Tinha-a eu amado para ter o direito de odiá-la.
Lúcia estava no toucador, acabando de vestir-se. A minha entrada lhe causou alguma
surpresa. O acolhimento que me fez foi triste, mas doce e afável.
— Cometi uma indiscrição talvez, usando da liberdade que me deu outrora.
— Quem fez do presente um passado já tão remoto? Não fui eu! Mas fique certo que esta
casa, hoje, como ontem, como amanhã, não tem para o senhor nem portas, nem paredes.
— Renuncio de bom grado a tanta honra; prefiro esperar no topo da escada, a correr o risco
de uma surpresa ridícula para ambos.
Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os últimos toques ao seu
traje, que se compunha de um vestido escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado
para deixar ver as suas belas espáduas, de um filó alvo e transparente que flutuava-lhe pelo seio
cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de tentar Eva, se ela tivesse
resistido ao fruto proibido. Uma grinalda de espigas de trigo cingia-lhe a fronte e caía sobre os
ombros com a basta madeixa de cabelos, misturando os louros cachos aos negros anéis que
brincavam.
Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava o desmaio;
os olhos luziam com ardor febril que incomodava, e os lábios se contraíam num movimento que não
era riso nem ânsia, mas uma e outra coisa. Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela; a
idéia de que ela se enfeitava para outro homem irritava-me a ponto que estive para precipitar-me e
espedaçar, arrancando-lhe do corpo, as galas que a cobriam.
— Ainda não a felicitei pelo seu novo amante!
— Quem não tem o direito de escolher, aceita o primeiro que lhe chega; e o mais ridículo é
sempre o melhor.
— É naturalmente para ele que está se pondo tão bonita!
— Acha que estou bonita? perguntou com o sorriso que deve ter o condenado para o Sol
nascente que vem alumiar o seu suplício.
— Nunca a vi tão fascinadora, nem vestida com tanto primor. Ele merece.
— Dizem que outrora ornavam-se as vítimas para o sacrifício.
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— Isso foi outrora; mas hoje que os sacrifícios são incruentos, a vítima orna-se para o
sacrificador; também em vez do sangue daquela, é o ouro deste que corre nas aras consagradas ao
prazer.
Lúcia quis responder-me, mas reprimiu-se a tempo de sorver a palavra que já lhe espontava
no lábio. Foi uma coisa que notei desde que começaram as nossas relações: esse espírito mordaz e
cintilante, esse verbo rápido que não deixava sem resposta nem um motejo, se ofuscava sempre e
emudecia diante de mim.
— Pode-se saber onde vai, se não é segredo? Dirige-se talvez ao templo do sacrifício.
— Vou ao Paraíso.
Tão alheio andava eu deste mundo fluminense! Nem sabia que naquela noite havia um
baile público.
— Ah! vais ao baile! Então não se demore; são horas.
— Estou à espera de alguém.
— Diga do Sr. Couto; já não é segredo. E agora me lembro, a minha presença aqui pode
comprometê-la; eu me retiro.
— O senhor está na minha casa; não a chamo sua para não ofendê-lo.
— Ou para que não me venham tentações de ficar.
— Quem lhe impede?
— Deveras!... Seria agradável para a senhora deixar um paciente em casa contando as
horas, enquanto vai ao baile exibir a sua nova conquista, e arrular pombinhos nalgum hotel de
Botafogo. Na volta esse paciente pode servir para apagar o fogo que as brumas do inverno apenas
sopraram. Infelizmente, por mais inocente que seja esse pequeno manejo, não estou disposto a
prestar-me a ele.
— Que gosto tem em me estar assim torturando! O senhor sabe que por mais cruel que seja
a sua zombaria, não sei retorquir-lhe! Não quer que eu saia de casa? Basta-lhe dizer uma palavra!
— E a senhora ficaria?
— Duvida!
Com um movimento rápido, Lúcia correu a mão pelos cabelos, e o penteado desfez-se
como por milagre, deixando cair a grinalda aos pés e rolar as tranças pelas espáduas.
Ouviu-se rumor de passos na sala.
— Não faça isto!... Aí está o Couto; ele vai ficar furioso e com razão! Pode dar algum
escândalo! disse escarnecendo.
A um sinal de sua senhora, a escrava de Lúcia abriu a porta ao Couto, que entrou sem me
ver.
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— Ainda neste estado!... Se eu adivinhasse, tinha trazido o cabeleireiro para penteá-la.
— Não se precisa aqui desta gente! murmurou Joaquina
— Pois faz a tua obrigação, penteia tua senhora; e se andares depressa, terás uma boa
molhadura.
— Não vou ao Paraíso! disse Lúcia friamente.
— Como, minha amiga! Que capricho é este! O baile deve estar brilhante. O que há de
mais chibante na corte lá se achará esta noite. Faze idéia! Venderam-se todos os bilhetes! Tão cedo
não teremos outro baile como este! Bem sabes que são raros no Rio de Janeiro.
— Prefiro ficar em minha casa. O Sr. Silva toma chá comigo; estaremos sós e
conversaremos mais à vontade!
Foi então que o Sr. Couto me viu sentado no sofá; desta vez não me cumprimentou. Era
demais.
— Então é esse o motivo por que não vai ao baile! E foi para isso que me mandou chamar
e me fez acompanhá-la esta manhã pela Rua do Ouvidor? O meio é engenhoso! Finge-se um arrufo,
e põe-se o amor em leilão a quem mais der.
— Uma infâmia de mais ou de menos para quem já perdeu a conta, vale a pena que se
ocupem com ela? Não vou ao teatro, repito; e peço-lhe que me deixe tranqüila.
O Couto fez um gesto soberbo, e uma saída teatral.
Tinha assistido mudo e com aparente indiferença a esse incidente; mas que rápida sucessão
de sentimentos houve no meu coração! À vaidade de ver Lúcia ceder pronta e espontaneamente a
um desejo meu apenas suspeitado, sucedeu o prazer da humilhação do Couto em minha presença.
Depois, quando o velho libertino revelou o procedimento vil da cortesã, e esta com toda a
desvergonhez apanhou a lama em que patinhava para lançá-la ao seu parceiro, senti, com o asco e o
vexame de achar-me ligado a tanta miséria, um consolo imenso das torturas que sofrera naquele dia.
Esses dois entes são dignos em do outro, murmurou minha alma ao coração ainda magoado.
Mas restava uma última emoção. Reatar as relações quebradas dessas duas criaturas;
entregá-las uma à outra como presas destinadas a saciar a cupidez e a lascívia uma da outra; jungir o
vício ardente e moço ao vício enregelado e decrépito; fazê-los arrastar na mesma canga a crápula
ignóbil, ferroando-os com o aguilhão do meu sarcasmo: seria a minha vingança.
Vingança de quê? Tinha-me essa moça ofendido para assanhar em mim o ódio e os
instintos perversos do coração humano? Não era eu a causa única de tudo o que se passava?
A razão dormia naquele momento. Ordenei à escrava que chamasse o Couto em nome da
senhora; e o fiz com tanto império que ela obedeceu-me apesar do gesto de Lúcia.
Então voltei-me para esta:
— Agradeço-lhe muito a fineza; mas é um sacrifício que não tem o direito de fazer, e que
eu não terei decerto o desfaçamento de aceitar. Esta noite a senhora não se pertence: é um objeto,
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um bem do homem que a vestiu, que a enfeitou e cobriu de jóias, para mostrar ao público a sua
riqueza e generosidade.
— A mim?... exclamou Lúcia indignada, e continuou com sorriso amargo: Pois sim,
roubei-o! E ele deve agradecer-me; porque assim leva a honra intata!
— A senhora vai ao baile!
— Morta podem levar-me; viva não.
— Então expulsa-me da sua casa. Sabe o que esse velho palhaço, que é hoje seu amante, pensava esta manhã,
sem ter a coragem de o dizer? Que eu a havia desfrutado corpo e bens durante as nossas relações, e por isso era tempo
da senhora indenizar-se do prejuízo! Não basta! É preciso que ele pense ainda que este pretendido arrufo foi um
expediente engenhoso da minha parte para encher o cofre que esgotei!
Lúcia não me respondeu uma palavra; com a mesma vivacidade que pusera em desfazer o
seu penteado, arranjou-o de novo sem alinho; e voltou-se para mim de olhos baixos e submissa,
como uma escrava que esperasse a última ordem do senhor.
Que miserável animalidade havia em mim naquela noite! Quando essa pobre mulher
atingia o sublime do heroísmo e da abnegação, eu descia até à estupidez e à brutalidade!
— Pois realmente capacitou-se de que eu podia ter ciúmes de um Couto! Que
extravagância! Nem dele, nem de qualquer outro! Era preciso que tivesse um ciúme bem elástico
para poder abarcar todos os que a senhora distinguiu e há de distinguir com os seus favores! Fique
sossegada: virei alguma vez colher a minha flor; mas em ocasião que não perturbe os seus bucólicos
amores. Então me contará os ridículos de seu velho amante, e afianço-lhe que passaremos uma hora
divertida, rindo-nos à custa do próximo: salvo bem entendido, a cada um de nós o direito de rir-se
interiormente do outro.
— Duas vezes no mesmo dia! É muito, meu Deus! exclamou Lúcia tragando um soluço.
O Couto entrava morno e carrancudo.
— A senhora arrependeu-se; e está pronta a acompanhá-lo ao baile.
— E ao senhor é que devo agradecer esta resolução repentina?
— O senhor... O senhor só tem que me agradecer uma coisa: é a minha paciência. Quanto
ao baile, a senhora é livre, e eu não tive parte nem na sua recusa de há pouco, nem na sua aceitação
de agora.
— Se assim não fosse, rejeitaria o favor.
— Pois saiba que vou a esse baile, disse Lúcia, unicamente porque o Sr. Silva me ordenou;
e devo obedecer-lhe.
O Sr. Couto procurou o lenço e não acertou com o bolso da casaca.
— Não se esqueça de deitar um pouco de carmim! disse eu a Lúcia despedindo-me. Está
horrivelmente pálida.
Ela sorriu.
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— Não faz mal! Julgarão que passei a noite de ontem nalguma orgia! Faz seu efeito!
Nesse momento a mucama lhe apresentava as luvas e o leque, o mesmo do nosso primeiro
encontro, e que ela costumava trazer sempre. Lúcia recuou como se uma áspide a quisesse morder.
— Esse não!
Cuida que a minha raiva brutal ficou satisfeita?
Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue. É verdade, tinha frenesi de matar essa
mulher; porém matá-la devorando-lhe as carnes, sufocando-a nos meus braços, gozando-a uma
última vez, deixando-a já cadáver e mutilada para que depois de mim ninguém mais a possuísse.
Ela lá estava sempre bela, sempre radiante. Júbilo satânico dava a essa estranha criatura
ares fantásticos e sobrenaturais entre as roupas de negro e escarlate.
Junto dela descobri a Nina, que, apesar da sua graça, desaparecia completamente naquela
zona que Lúcia deslumbrava com a sua reverberação. Mas eu que via com os olhos do despeito,
percebi-a imediatamente.
Nina sabia das nossas relações, e ignorava ainda o desenlace muito recente. As minhas
pretensões deviam pois ter para ela o encanto que acha toda a mulher em afligir outra que lhe é
superior pela graça e formosura: assim explicam-se os avanços de amabilidade que me fez à custa
de algum crédulo e paciente admirador; deu-me uma entrevista em sua casa depois do baile.
Mas esse favor, discretamente concedido, não me servia; era preciso que mais alguém o
soubesse.
— Então, uma hora depois do baile? disse eu alçando a voz.
— Sim; mas segredo! respondeu Nina levando o dedo à boca.
— Estará só? perguntei para mais fazer ainda ouvir a minha fala.
Nina fez um momo gracioso; os ombros de Lúcia agitaram-se com um tremor nervoso.
Não conheço mais estúpido animal do que seja o bípede implume e social, que chamam
homem civilizado.
Na véspera era feliz. Estava numa brilhante reunião, onde se achavam talvez as mais
bonitas senhoras do Rio de Janeiro. Observando-as com o culto do belo e a religião da mulher, que
é inata em mim, conhecia que em graça e atrativos não tinha que invejar ao mortal ditoso a quem
elas abandonassem um dia os primores de sua mocidade. Mais linda que todas, uma mulher me
esperava, que em troca da pureza que não tinha, me guardava seus imensos tesouros de
voluptuosidade; ela me esperava cheia de mim; e para não deixar-me um instante, me acompanhara
de longe com os olhos através do mundo que fechara-lhe as suas portas.
Bastou uma palavra, um sentimento de convenção, para que o meu orgulho destruísse a
felicidade que as suas mãos delicadas tinham tecido com tanta paciência e esmero. E como remate
da minha demência, depois de haver torturado aquela pobre mulher, depois de a ter insultado
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covardemente, acabava de entregá-la a um velho histrião, para agarrar-me à fralda da primeira saia
que passava pelo meu caminho. E eu considerava isto a minha vingança!
Como tinha razão o poeta que chamou o homem um menino corpulento — puer robustus!
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XIV
Foi uma noite horrível.
O baile terminara às duas horas. Lúcia assistira até o fim, o que ainda mais me irritou,
porque eu desejava triunfar com a sua saída precipitada, depois do desprezo que lhe mostrara. «Se
ela se retirasse, pensava eu, correria à sua casa para pedir-lhe perdão». Mas não acredite que o
fizesse: procederia com o mesmo orgulho estúpido que me dominou no momento em que ela
despediu o Couto e renunciou ao baile para ficar comigo.
Na retirada o velho esperava-a na porta, e partiram ambos de carro.
— Está acabado! disse comigo. Não pensemos mais nisto.
Porém não era coisa fácil apagar no meu espírito a profunda impressão que aí deixara
gravada a imagem de Lúcia. Tomei o braço do Rochinha, que encontrei ao sair, e fomos cear no
primeiro hotel que encontramos aberto. Em qualquer outra ocasião esse moço me enjoaria com a
sua afetada decrepitude moral; nesse momento era um homem que podia falar-me de Lúcia e dizer
mal dela.
Com efeito o Rochinha contou-me diversas anedotas escandalosas da vida de Lúcia; e
concluiu dizendo:
— Não acredito ainda que esse Diógenes do Couto seja seu amante.
— Ouvi-a confessar esta noite mesmo. Saíram juntos do baile.
— Pois admira-me; porque há muito tempo que ele a persegue debalde. Lúcia tinha-lhe tal
birra, que no dia em que o via, ficava de um humor insuportável.
— São coisas que passam. O velho abriu os cordões da bolsa; e o motivo da antipatia
desapareceu.
— Pode ser que ela esteja agora em crise financeira; mas asseguro-lhe que a questão não
era de dinheiro, não. O Couto, como todos os velhos gamenhos que compram o amor, à hora certa,
é mais que generoso, é pródigo; vi-o oferecer a Lúcia somas fabulosas que ela rejeitava sempre e
com desprezo.
Essas palavras me consolaram. Uma débil esperança espontou-me no coração; corri à casa
de Lúcia.
A porta ainda estava aberta; Lúcia não tinha voltado! eram perto de três horas e meia,
naturalmente estava em casa do Couto.
Pus-me a passear na calçada; ao surdo rodar de um carro que passava longe, aplicava o
ouvido para conhecer se ele se aproximava; o rumor se desvanecia e com ele minha esperança, para
ressurgir de novo, e de novo extinguir-se. Nestas alternativas sem repouso vi os primeiros clarões
do dia.
Dirigi-me tristemente para o hotel e dormi, porque a fadiga me vencia.
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Eis qual tinha sido a minha noite; o acordar não foi menos cruel. Sucede com as feridas
d'alma o mesmo que às feridas do corpo: é quando elas esfriam, que a dor se torna aguda e
lancinante. Lembrei-me do que sucedera; repassei uma a uma as circunstâncias do dia anterior;
reconheci a minha grosseira imbecilidade; e a consciência de que eu tinha sido o mais culpado,
devia dizer o único, exacerbava o meu sofrimento.
E essa pobre moça, a Nina, inocente da minha loucura, que talvez por meu respeito perdera
o seu amante? Era a primeira vez, desde que a deixara, que me recordava dela. Devia-lhe uma
desculpa; e como não tinha outra coisa que fazer, aproveitei esse pretexto para sair.
Pensava, chegando à casa de Nina, encontrar um rosto fechado, um momo despeitado, e
um bom-dia atirado da ponta de um beiço desdenhoso. Qual não foi portanto a minha surpresa
vendo-a precipitar-se para mim, abraçar-me com ímpeto, e atirar-me de repente pela testa e pelo
rosto uma chuva de carícias que me azoou.
Afinal consegui desprender-me dos braços que me enlaçavam; ia pedir uma explicação,
quando Nina atalhou-me:
— Estou muito zangada com o senhor! disse com um ar que exprimia inteiramente o
contrário. Fazer-me esperar até não sei que horas!
— Confesso que cometi uma falta; mas há de me desculpar.
— Ah! Cuida que a pulseira que me mandou paga o prazer de sua companhia!
Enganou-se!...
— A pulseira! balbuciei sem compreender.
— É linda que faz gosto. Não há segunda: a Lúcia não tem melhor. Também o senhor nem
sabe como lhe agradeço.
E um novo granizo de beijos ia cair sobre mim; mas desta vez desviei-me a tempo.
— Está gracejando! Que quer dizer isto?
— Ora, faça-se desentendido! Já não se lembra de que me mandou pelo seu criado esta
manhã?
Julguei que a moça tinha perdido a cabeça, ou que eu sofria uma mistificação.
— Ah! percebo! exclamou Nina que de seu lado também me considerava com surpresa.
Queria achar-me com. ela! Tem razão.
Saiu e logo voltou trazendo um cartão meu e uma caixa de jóia que eu abri
precipitadamente. Tinha reconhecido a pulseira de brilhantes que dera a Lúcia no dia seguinte à ceia
do Sá.
Entrei no primeiro tílburi que passou, e atravessei as ruas a galope.
Lúcia estava atirada a um sofá de bruços nas almofadas que escondiam-lhe o rosto. Tinha o
mesmo vestido de seda escarlate que levara ao teatro, porém amarrotado, com as rendas
despedaçadas e os colchetes arrancados da ourela, onde se viam os traços evidentes das unhas. Os
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cabelos em desordem flutuavam sobre as espáduas nuas; a grinalda despedaçada, o leque e as luvas
jaziam por terra; numa cadeira ao lado estavam amontoadas todas as suas jóias.
Vendo-me, ergueu-se de um salto e quis precipitar-se para mim; porém decerto o meu
olhar cru a conteve, porque deixou-se cair sentada sobre o sofá em que estava. Sentei-me também, e
incomodado; viera com uma cólera violenta; mas começava a sentir-me mau e pequeno diante dessa
mulher sublime nas suas paixões. O seu rosto pisado, os olhos injetados de sangue e febricitantes
ainda aumentaram o meu vexame.
Peguei maquinalmente nas jóias que estavam sobre a cadeira.
— Estas jóias são de muito valor!... Mas falta aqui uma, a mais insignificante! Não era
digna por certo de brilhar no seu braço; atirou-a de esmola a alguma mendiga, e deu uma lição ao
bobo que teve a ousadia de oferecer-lhe semelhante miséria. Aquilo quando muito, é o preço de
uma noite de qualquer mulher à-toa, da Nina por exemplo.
Ela tinha-se erguido trêmula; e foi-se a pouco e pouco retraindo até cair de joelhos.
— Foi uma loucura, e eu mereço toda a sua cólera. Mas para que me fazer penar assim,
meu Deus! Que prazer lhe podia dar essa mulher?... Não me tinha a mim? Uma escrava humilde,
pronta para lhe obedecer, e que em paga de tanta submissão só lhe pedia que a não expulsasse!
— E a senhora não chamou um velho desprezível para sua casa?
— É tão diferente! Eu! Não fui atirada contra minha vontade à lama de que desejava
erguer-me? Recuando ainda, não fui à noite repelida cruelmente e lançada nos braços desse homem,
que no meu desespero eu procurei, por ser mesmo o ente mais vil e ignóbil que eu conheço; pois era
preciso que o suplício fosse bastante violento para matar-me logo, e sem lenta agonia! No baile,
apesar de tudo, não esperei uma palavra, um sinal para correr a seus pés, e suplicar-lhe como agora
o meu perdão!
Lúcia pousou a cabeça sobre os meus joelhos, sufocada pelo pranto; e eu não a ergui logo e
não a apertei ao meu seio, porque achei-me tão infame a par dessa mulher, que sentia um vexame
insuperável. Por fim levantei-a nos meus braços, e confesso que foi corando de vergonha.
— Quem deve pedir perdão desta como de todas as vezes, Lúcia, sou eu: mas não o
mereço, não.
— Basta! Já me falou como outrora! Disse o meu nome! Que mais quero eu saber? Esqueci
tudo.
— Deixa-me falar; não me interrompas. Sou um miserável, indigno de ti. Eu só com o meu
orgulho estúpido fui causa do que temos sofrido; mas é justo que a punição recaia sobre mim
unicamente. Se a idéia de que tive um instante aquela mulher, te aflige, expele a lembrança desse
mau sonho; pisei em sua casa pela primeira vez hoje, há meia hora. Vi a pulseira, compreendi tudo,
e corri até aqui!
Que êxtase de bem-aventurança foi o de Lúcia quando ouviu a confissão que eu lhe fazia!
A mulher quebrada de fadiga, prostrada por uma noite de vigília e de violentas emoções,
transfigurou-se de repente: o anjo de suave beleza surgiu na sua auréola luminosa, ao bafejo de uma
felicidade celeste.
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— Passei esta noite, continuei, cheio de teu pensamento e de tua imagem. Às duas horas
estive aqui, não te disseram? Esperei-te passeando na calçada até quase ao amanhecer; e as torturas
que eu sofri é impossível dizer. Mas eu a procurei; não me posso queixar de ti, não tenho que
pedir-te contas! Fui eu que te arrastei à força, louco que eu estava.
— Não fale mais nisso! Acabou; foi um pesadelo que tivemos. Esqueça tudo! Eis o que vai
apagar para sempre essa lembrança importuna.
Dizendo isto Lúcia estendeu-me o lábio risonho; eu recuei como se visse por entre o
carmim brilhar o dente de uma víbora. Ela empalideceu.
— Nunca mais, eu juro, Lúcia, tu me ouvirás as palavras que ontem te disse; nunca mais
também me verás rejeitar por causa das calúnias de alguns miseráveis as provas de tua afeição. Mas
esse beijo, agora!… Não! não o posso aceitar, e não me perguntes a razão!
Lúcia cobriu-me com um olhar límpido, raio de luz de sua alma; o seu sorriso era sublime
de candura.
— Aquele homem não tocou no meu corpo, porque até a mão que roçou na sua, estava
calçada com esta luva, que eu já despedacei, disse estendendo a ponta do pé. Mas tem razão,
bastava o seu hálito para manchar. Olhe para mim. Quando eu despir esta roupa, despirei trapos que
para nada servem!
Foi então que reparei na desordem de seu traje.
— Não me enganas, Lúcia?
— Que juramento quer que lhe dê? O mais sagrado!...Se não fosse assim, teria ânimo de
falar-lhe, de vê-lo ainda! Também eu, não sabe? Estive na rua até quase ao amanhecer, olhando a
casa onde supunha que o senhor apertava nos braços outra mulher! Não se morre de dor, porque eu
não morri esta noite!
— Não me devias dizer semelhante coisa para me punir!
Fui eu que procurei então o lábio que ela há pouco me oferecera.
— Espere!...
Lúcia demorou-se algum tempo. Quando apareceu, saía do banho fresca e viçosa. Trazia os
cabelos ainda úmidos; e a pele rorejada de gotas d'água. Rica e inexaurível era a organização dessa
moça, que depois de tão violento abalo parecia criar nova seiva e florescer com o primeiro raio de
felicidade!
Fora o acaso ou uma doce inspiração, que arranjara o traje puro e simples que ela trazia?
Tudo era branco e resplandecente como a sua fronte serena: por vestes cassas e rendas; por jóias
somente pérolas. Nem uma fita, nem um aro dourado, manchava essa nítida e cândida imagem.
Creio antes na inspiração. Lúcia tinha no coração o germe da poesia ingênua e delicada das
naturezas primitivas, que se revela por um emblema e por uma alegoria. Ela me dizia no seu traje, o
que nunca se animaria a dizer-me em palavras, que estava tão pura como eu a tinha deixado, do
contato de outro homem.
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Lúcia expandia-se com tal efusão de contentamento, que, se há felicidade neste mundo,
devia ser a que ela sentia. Entretanto, passada essa primeira e fugace irradiação, achei-a fria, quase
gelada; apenas respondia às minhas carícias ardentes e impetuosas. Naquele momento atribuí à
prostração natural depois de tão fortes emoções; porém me enganava.
A frieza continuou aumentando de dia em dia, até que uma vez não me pude conter:
— Parece-me que já te aborreceste de mim, Lúcia!
— Creio que estou doente! sofro tanto!
— De quê? Dessa moléstia do coração de que já me falaste ?
Fugiu-lhe pelos lábios um sorriso sinistro.
— Sim; dessa moléstia do coração que me há de matar!
E então, como para desvanecer a impressão que me deixara a sua frieza, atirava-se aos
meus braços com uma espécie de frenesi; mas a sua ternura tinha um desabrimento e rispidez que
me lembravam as palavras de Sá, e as impressões acres da primeira vez que possuíra esta mulher.
A minha Lúcia dos bons dias, que aveludava-se no estreito enlace com que me cerrava ao
seio, que diluía-se de gozo engolfando-me num mar de voluptuosidades, que aspirava-me a vida
num beijo para vazá-la de novo e gota a gota: essa, eu só revia nas minhas doces recordações;
porque a realidade fugia-me, quando a buscava com desespero.
Esqueci-me de lhe contar um incidente que se passou na mesma manhã da nossa
reconciliação. Quis sair um momento para ir pagar as dívidas que Lúcia fizera na véspera.
— Já estão pagas! me respondeu sorrindo e mostrando os recibos.
— Por quem? perguntei com severidade.
— Por mim! Quem, senão eu, tinha o direito de pagá-las?
— Mas ontem o Couto te acompanhava...
— O senhor queria que eu tivesse amantes! disse Lúcia entristecendo. Mandei chamar esse
velho. Não sabe por quê?... Antes quereria dar-me a um escravo, do que vender-me a ele por todo o
ouro deste mundo!
— E a tua pulseira? Ficarás sem ela?
— Psiu! fez Lúcia levando o dedo à boca e baixando a voz. Não fale mais nisso! Deixa-a
ir; queimava! Ficou-me a sua lembrança!
Tirou então o adereço de azeviche que eu lhe tinha dado.
— Apareceu enfim!
— Ainda não se passou um só dia sem que o trouxesse uma hora pelo menos.
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— Nunca te vi com ele.
— Não se lembra do motivo?... Agora já não preciso escondê-lo! Vale os brilhantes que
perdi.
Desde então realmente a sua predileção por aquelas jóias tornou-se uma espécie de
fetichismo para esse coração, que por muito tempo ermo e vazio, sentia ardente sede de afeição.
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XV
Decorreram vinte dias.
Chegando uma tarde vi Lúcia assustar-se e esconder sob as amplas dobras do vestido um
objeto que me pareceu um livro.
— Estavas lendo?
Ela perturbou-se.
— Não, estava esperando-o.
— Quero ver que livro era.
Meio à força e meio rindo consegui tomar o livro depois de uma fraca resistência. Ela ficou
enfadada.
Era um livro muito conhecido — A Dama das Camélias. Ergui os olhos para Lúcia
interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes lê-se não por hábito e distração, mas pela
influência de uma simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até
nas páginas mudas de um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor?
Sonharia com as afeições puras do coração?
Ela tornou-se de lacre sentindo o peso de meu olhar.
— Esse livro é uma mentira!
— Uma poética exageração, mas uma mentira, não! Julgas impossível que uma mulher como Margarida
ame?
— Talvez; porém nunca desta maneira! disse indicando o livro.
— De que maneira?
— Dando-lhe o mesmo corpo que tantos outros tiveram. Que diferença haveria então entre
o amor e o vício? Essa moça não sentia, quando se lançava nos braços de seu amante, que eram os
sobejos da corrupção que lhe oferecia? Não temia que seus lábios naquele momento latejassem
ainda com os beijos vendidos?
— O amor purifica e dá sempre um novo encanto ao prazer. Há mulheres que amam toda a
vida; e o seu coração, em vez de gastar-se e envelhecer, remoça como a natureza quando volta a
primavera.
— Se elas uma só vez tivessem a desgraça de se desprezar a si próprias no momento em
que um homem as possuía; se tivessem sentido estancarem-se as fontes da vida com o prazer que
lhes arrancavam à força da carne convulsa, nunca mais amariam assim! O amor é inexaurível e
remoça, como a primavera; mas não ressuscita o que já morreu.
— Pelo que vejo, Lúcia, nunca amarás em tua vida!
— Eu?... Que idéia! Para que amar? O que há de real e de melhor na vida é o prazer, e esse
dispensa o coração. O prazer que se dá e recebe é calmo e doce, sem inquietação e sem receios. Não
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conhece o ciúme que desenterra o passado, como dizem que os abutres desenterram os corpos para
roerem as entranhas. Quando eu lhe ofereço um beijo meu, que importa ao senhor que mil outros
tenham tocado o lábio que o provoca? A água lavou a boca, como o copo que serviu ao festim; e o
vinho não é menos bom, nem menos generoso, no cálice usado, do que no cálice novo. O amor!... O
amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe! Mas o
verdadeiro amor d'alma; e não a paixão sensual de Margarida, que nem sequer teve o mérito da
fidelidade. Se alguma vez essa mulher se prostituiu mais do que nunca, e se mostrou cortesã
depravada, sem brio e sem pudor, foi quando se animou profanar o amor com as torpes carícias que
tantos haviam comprado.
Lúcia falou com uma volubilidade nervosa. Às vezes o rosto se tornava sombrio e torvo
para esclarecer-se de repente com um raio de indignação, que cintilava na pupila; outras, a sua
palavra sentida e apaixonada estacava no meio da vibração, afogando num sorriso de desprezo.
— E houve um homem que aceitasse semelhante amor?
— Ele também a amava; e certamente não pensava como tu.
— Mas é impossível amar uma mulher que se compra, e se tem apenas a desejam! A
menos que não se ame por especulação e cálculo para obter-se de graça o que não se pode pagar.
— Seria uma infâmia! Não dês a isto o santo nome do amor.
— E podemos nós ser amadas de outro modo? Como? Arrependendo-nos, e rompendo com
o passado? Talvez o primeiro que zombasse da mísera fosse aquele por quem ela desejasse se
regenerar. Pensaria que o enganava, para obter por esse meio os benefícios de uma generosidade
maior. Quem sabe?... suspeitaria até que ela sonhava com uma união aviltante para a sua honra e
para a reputação de sua família. Antes mil vezes esta vida, nua de afeições, em que se paga o
desprezo com a indiferença! Antes ter seco e morto o coração do que senti-lo viver para semelhante
tortura.
— Está bem: deixemos em paz A Dama das Camélias. Nem tu és Margarida, nem eu sou
Armando.
— Oh! juro-lhe que não!
Esse juramento teve uma solenidade que me pareceu caricata. Ou porque o percebesse, ou
por uma das inexplicáveis transições que lhe eram freqüentes, Lúcia soltou uma gargalhada.
— Realmente este livro não presta. Nem quero acabá-lo. Cometeu-se aí um sacrilégio
literário.
As folhas deste primor da escola realista voaram despedaçadas pelas mãos crispadas de
Lúcia, que parecia antes estrangular uma víbora, do que rasgar o livro inocente que tivera a
infelicidade de irritar-lhe o humor.
Tinha ido levar a Lúcia um bilhete de teatro, que ela aceitou. As nossas relações tinham-se
modificado insensivelmente, depois do choque violento que sofreram.
Há de ter visto em nossas matas algumas árvores estreitamente abraçadas pelas delgadas
enrediças que lhes cingem o tronco, confundindo na mesma copa as suas folhas e flores. Um dia
vem a borrasca que abala com rudeza o arvoredo: não conseguem os ímpetos da ventania quebrar os
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elos que prendem as duas plantas amigas; porém a enrediça deslizando inclinou para a terra. Volta a
bonança: a seiva expande-se com as águas que passaram; o pâmpano tocando o chão começa se
lastrar; a haste da árvore desassombrada se lança. No ano seguinte, quando de novo por aí passar,
verá o tronco nu e isolado, e o verde dossel bordado de flores que o cobria se estenderá ao longe
humilde e rasteiro.
É a imagem fiel do que nos acontecera. O mundo soprando o seu hálito frio na intimidade
de nossa existência não tinha podido separar Lúcia de mim; porém o estame delicado de sua vida
desprendeu-se do meu seio, onde ela o escondera e abrigara. A flor mimosa de sua alma talvez
sentisse que a sombra das ramas ia faltar-lhe contra os sóis abrasadores, como a proteção do tronco
contra os vendavais. E inclinou-se, langue e desfalecida. Eu, que a devia erguer, não o fiz, porque
também sentia o mundo que me impelia; as aspirações do futuro me chamavam à vida de estudo e
trabalho.
Involuntariamente pois, sem queixas nem recriminações, apenas com uma doce saudade
dos tempos que fugiam rápidos, ambos cedíamos a uma lei natural, e víamos afrouxarem os laços
que nos uniam. Lúcia, sempre meiga e terna para mim, não podia já esconder a frieza com que
recebia o gozo que outrora era a primeira a provocar. Quando as minhas instâncias redobravam, ela,
que a princípio se expandia entre o rubor, sorria constrangida como uma escrava submissa ao aceno
do senhor.
Eu assistia em silêncio a essa transformação. Algumas vezes tentava ainda soprar naquelas
cinzas para ver se ateava uma chama do intenso fogo que lavrara ali; mas esmorecia, porque já o
frio me ia invadindo; e só colhia as pálidas rosas que ainda espontavam breves e rápidas como
flores de chuva. Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa influência do passado,
preferia a frieza dessa mulher aos transportes de qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como
sem intenção, uma fidelidade exemplar.
Não se admire pois se eu lhe disser que já não ia todos os dias à casa de Lúcia, apesar de
suas instâncias; contudo sentia que a minha presença ainda lhe era agradável, e que ela a desejava,
senão ardentemente, com uma doce emoção. Parecia que o prazer fugindo deixava a amizade calma
e serena.
Qual era a existência de Lúcia durante o tempo que não passava em sua casa? Ignorava
completamente; tinha até receio de conhecê-la; quando nalgum círculo a conversa caía sobre ela, de
ordinário me retirava. Adivinha a razão. Lúcia não tinha compromissos para comigo; devia usar de
sua liberdade; se eu lhe havia guardado uma fidelidade espontânea, não tinha por isso direito de
exigir retribuição, sobretudo depois que minhas visitas se tornavam mais curtas e menos freqüentes.
Contei-lhe tudo isto a propósito do teatro, onde nos devíamos encontrar.
Lá estava a família do Sr. R... a quem fui cumprimentar apenas caiu o pano. A mãe,
absorvida por uma velha titular, que lhe contava maravilhas do teatro S. João, depois de acolher-me
com a sua costumada amabilidade, deixou-me à filha, que estava desesperada por achar um
cúmplice para a inocente crítica feminina. Não tendo nada que me ocupasse, entretive-me mais
tempo do que era natural com essa conversa, que não deixava de ser agradável para quem aprecia
como eu a botânica da flor viva, gênero zoófito, que se chama mulher. A menina às vezes
debruçava-se para comunicar-me alguma observação mais cáustica; e eu tinha ocasião de sentir um
hálito fragrante, e entrever na sombra a marmórea saliência de um seio virgem.
Saindo vi sentada na porta do seu camarote uma das poucas lorettes de Paris, que por um
belo dia de inverno, como verdadeiras aves de arribação, batem as asas, atravessam o Atlântico, e
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vêm espanejar-se ao sol do Brasil nas margens risonhas da mais bela baía do mundo. Ela tinha e
tem, com a cor da Espanhola e os cabelos da Italiana, a suprema elegância do passo e da atitude que
o solo parisiense inocula pelas plantas de suas filhas prediletas. Admirava e conhecia essa mulher
de a ter encontrado algumas vezes, mas as nossas relações não passavam de uma polidez mútua.
Vendo-a, tive como um pressentimento de que essa mulher era a única que poderia apagar
a lembrança de Lúcia. Levado por semelhante idéia, e também por esse desejo que temos todos de
tocar com o ciúme o ouro de uma afeição, a fim de lhe conhecer o quilate, aproximei-me:
conversamos alguns instantes.
Não sei se a senhora achará prazer na leitura destas cenas sem colorido, estirado diálogo
entre dois atores, raro interrompido pelo mundo, que lhes atira um eco de seus rumores. Já tenho
tido vezes de arrependimento depois que comecei estas páginas, que eu podia tornar mais
interessantes, se as quisesse dramatizar com sacrifício da verdade: porém mentiria às minhas
recordações e à promessa que lhe fiz de exumar do meu coração a imagem de uma mulher.
Fui ver Lúcia. Ela estava pensativa e distraía-se continuamente para fitar o óculo na
direção do camarote do R... Nem uma palavra a respeito da francesa, o que me contrariava, como
deve supor.
— Ainda há pouco te vi de um camarote!
— Onde está uma família?
— Não, de outro mais chegado à cena, disse sorrindo.
— Sei, também o vi na porta.
— É uma bonita mulher, não achas? repliquei fingindo indiferença, mas realmente
humilhado pela calma e sossego de Lúcia.
— Não conheço nem uma no Rio de Janeiro, nem mais bonita, nem mais graciosa. Merece
todas as atenções de que a cercam.
— Estive conversando com ela; achei-a muito agradável. Se não tivesse receio de
desgostar-te, iria vê-la.
Lúcia calou-se e levou o binóculo aos olhos. Era demais; nem sequer um despeito
simulado. A consciência de sua infidelidade a pungiria tanto que se reconhecia indigna até de fingir
ciúmes? Ou desejava ela ver romper-se o último véu que ainda nos ocultava a ambos a realidade de
uma afeição partida?
— Sabes o provérbio, Lúcia. Quem cala, consente.
— Como! Não ouvi! disse-me retirando o óculo e voltando-se para mim com a expressão
lesa de quem procura apreender uma idéia no vácuo da memória.
— É indiferente para ti que eu veja aquela francesa! O teu silêncio é claro!
— Tenho acaso o direito de me queixar? disse com melancolia. O prazer que ela lhe
promete, sinto que já não posso dá-lo.
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— Porque não queres; porque já não és a mesma!
— Não decerto, não sou a mesma! Mudei tanto!
— Para mim unicamente!
Ela fitou-me com um olhar ingênuo. Hoje que me lembro da expressão desse olhar leio
nele perfeitamente: Vive no mundo alguém mais? Era a frase muda de seus olhos.
Lúcia ergueu de novo o binóculo.
— Aquela família com quem esteve não é a mesma que o convidou para a partida? A filha
é muito bonita! O senhor dançou com ela!
75
XVI
Dias depois estava em casa de Lúcia; conversávamos tranqüilamente como dois bons
amigos num momento de expansão.
Ela me contara vagamente, sem indicação de datas nem de localidades, as impressões de
sua infância passada no campo entre as árvores e à borda do mar; seu espírito adejava com prazer
sobre essas reminiscências embalsamadas com os agrestes perfumes da mata, e por vezes a poesia
da natureza fluía no seu ingênuo entusiasmo.
Pela primeira vez também, desde o momento em que a conhecera, Lúcia se mostrara
curiosa a respeito do meu passado, de minha família, e de minhas ambições de futuro. Até então só
conhecia de mim o meu nome e a minha pessoa; nem mostrava desejar mais. Os meus sentimentos,
a minha vida íntima era um mundo em que se julgava profana, e no qual não ousava ou não queria
mesmo penetrar.
Já tinha por vezes refletido nessa abstenção, a qual aparentemente denotava que Lúcia só
estimava em mim o homem exterior; o moço que encontrara num dia de desenfado, e que lhe
agradara pela figura, pelos modos, ou antes por capricho seu. Pouco lhe importando saber donde
vinha e para onde ia esse companheiro de viagem, unira-se a ele para amenizar, durante o tempo
que seguissem o mesmo rumo, os incidentes do caminho e a solidão do pouso.
Naquele dia, pois, satisfazendo o seu desejo, falei-lhe pela primeira vez do meu verdadeiro
eu; das minhas esperanças, das minhas afeições, dos meus sonhos. Ela ouvia tudo com evidente
interesse: o nome de uma pessoa querida por mim, ou de parente ou de amigo; uma data de família;
uma localidade que fora teatro de algum dos pequenos acontecimentos da vida; tudo se gravara tão
rápida e profundamente no seu espírito, que as suas observações não pareciam de quem acabava de
ouvir, mas de quem acompanhara dia por dia os fatos que eu lhe contava. Identificando-se com a
minha alma, graças à admirável flexibilidade do senso íntimo da mulher, ela sentia e comovia-se,
recordando as minhas afeições; e nutria-se das minhas ambições, sonhando com elas, e dourando-as
aos reflexos de sua rica imaginação.
Lúcia trazia nessa manhã um traje quase severo: vestido escuro, afogado e de mangas
compridas, com pouca roda, simples colarinho e punhos de linho rebatidos; cabelos
negligentemente enrolados em basta madeixa, sem ornato algum. Em vez dos pantufos aveludados
que costumava usar em casa, no desalinho, calçava uma botina de merinó preto, que ia-lhe
admiravelmente, porque ela tinha o mais lindo pé do mundo. Quando o vento que entrava pela
janela erguia indiscretamente a fímbria da saia, apesar do movimento rápido que a conchegava,
descobria-se a volta bordada de uma calça estreita, cerrando o colo esbelto da perna divina.
O homem é um sistema de contrariedade.
As confidências mútuas, as expansões d'alma despegada do seu invólucro material, o
recato austero do traje que ocultava belezas criadas para viver em plena luz e ao ar livre, como as
flores do trópico, deviam alhear-me os sentidos. Mas bem longe disso, no fim da nossa conversação
remordiam-me as recordações. Meu olhar insinuava-se perfidamente pela abertura do colarinho
modesto que cingia uma garganta pura, espreguiçava-se pela seda avara que entufava a marmórea
rijeza de um seio comprimido; enleava-se nas pregas fofas que quebravam a harmonia das formas.
Tomei as mãos de Lúcia sorrindo, e meus olhos foram à porta vendada de sua alcova. Ela
ergueu-se rapidamente, e disse-me com um modo ríspido:
76
— Vou sair!
Era a primeira recusa que eu sofria.
O constrangimento de Lúcia tinha ido sempre em aumento; mas nunca, até ali, o meu
desejo encontrara uma resistência; nunca uma desculpa, um pretexto, o contrariara. Ainda pronta
para sair, no momento de entrar no carro, já no teatro ou no passeio, bastava uma palavra minha
para fazê-la voltar, muda e fria, é verdade, mas obediente e resignada. Em qualquer ocasião, a
qualquer hora do dia ou da noite, se meu lábio procurava o seu, achava-o, seco e áspero, mas dócil à
carícia.
— A que horas voltas?
— Não sei; é natural que me demore.
— Até à noite, então.
À noite, quando voltei, queixava-se de uma indisposição. Repeliu-me ainda; só abracei um
corpo convulso e gelado que me assustou; sobretudo quando, levando as mãos à cabeça, soltou um
gemido plangente e doloroso.
Estava realmente doente; respeitei-a. Às nove horas, apesar de minhas instâncias para ficar
velando-a na sua enfermidade, obrigou-me a sair, e disse-me adeus sem acrescentar, como tinha de
costume:
— Até amanhã.
Era também a primeira vez que a minha presença parecia contrariá-la. De manhã soube que
o seu incômodo se agravara durante a noite. Achei instalada em sua casa, como enfermeira, uma tal
Sr.ª Jesuína, mulher de cinqüenta anos, seca e já encarquilhada, com quem embirrei solenemente
desde o momento em que a vi. Essa insuportável criatura não deixava um momento a borda do leito;
e quando alguma vez eu tomava as mãos de Lúcia, ou reclinava-me para ela, quando meus lábios
iam roçar a flor de seu rosto, a Sr.ª Jesuína tinha sempre um remédio a dar, um travesseiro a
endireitar, uma recomendação a fazer.
Um dia retirando-me, a velha acompanhou-me até a sala; aí no meio de biocos e
gatimanhos, deu-me a entender que o médico proibira terminantemente a Lúcia o menor excesso,
que lhe podia ser fatal.
— Mas qual é a moléstia de Lúcia?
— Não me recordo; esses nomes de medicina são tão esquisitos! A moléstia agora não vale
nada; amanhã está de pé; e num mês pode ficar inteiramente boa. Somente nada de excesso!
A velha carregou na palavra, piscando os olhos pequeninos.
— Pode custar-lhe a vida! acrescentou.
— Qual é o médico que trata dela?
— Um tal... Não me lembro agora. Mas é bom doutor.
77
— A que horas costuma vir?
— Não tem hora certa. Quando o senhor chegou, tinha saído.
— Onde mora?
— Nem sei! Ele disse; porém já me esqueci!
Desejava falar ao médico para saber com certeza o estado de Lúcia; não o consegui porém.
No dia seguinte já encontrei Lúcia na sala, ainda abatida, mas sem sofrimento algum.
Decorreu uma semana. Lúcia tinha-se restabelecido completamente; continuávamos as
nossas longas conversas de outrora, mas não a sós. A Sr.ª Jesuina ficara a título de caseira ou dama
de companhia; encontrava-a invariavelmente repimpada numa cadeira de balanço, a dois passos de
Lúcia, lendo uma coleção de novelas em que brilhavam Zaíra, e os Azares da Fortuna. Se alguma
vez Lúcia se levantava, a Sr.ª Jesuína atirava com um movimento da cabeça os óculos de tartaruga
sobre a ponta do nariz, e seguia-a para lhe perguntar se queria um refresco, um banho, o jantar, a
roupa para sair, ou qualquer outra coisa.
Afinal não me pude ter.
— Já estás boa, Lúcia; não precisas mais de enfermeira. Que faz aqui esta velha?
— Faz-me companhia. Vivo tão só!
— Outrora a minha companhia te bastava.
Não me respondeu.
— Manda-a embora!
— Não é possível; preciso dela, mesmo para o arranjo da casa.
— Bem; como eu não a posso suportar, não voltarei enquanto ela aqui estiver.
A Sr.ª Jesuína tinha ouvido, o que me era completamente indiferente. Lúcia abaixara a
cabeça e ficara pensativa; ao retirar-me, quando me apertava a mão, disse:
— Não a encontrará mais!
De fato no outro dia não encontrei a Jesuína. Lúcia estava só; todos os obstáculos e
contrariedades que sofria depois de duas semanas, me tinham irritado; creio que fui até violento e
grosseiro; mas debalde. A resistência era tenaz e friamente calculada. Um momento, enquanto se
debatia nos meus braços, o egoísmo cruel que às vezes faz do homem uma fera, e lhe dá instintos
carniceiros, levou-me a dizer-lhe com escárnio:
— É a recomendação do médico? Tens medo de adoecer!
— Se fosse isso! Ainda quando soubesse que morreria nos seus braços... Que morte mais
doce podia eu desejar. Não; não é esse o motivo. Não houve tal recomendação, nem aqui veio
médico. Repugna-me enganá-lo: tudo foi uma mentira daquela mulher.
78
— Não estiveste doente? perguntei admirado.
— Tive uma ligeira indisposição. Naquele dia em que saí, andei muito e apanhei bastante
sol; quando voltei, tinha dores de cabeça horríveis. O senhor chegou... E naquele momento cuidei
que ia ter uma vertigem. Mas passou!
— E a que veio a história daquela velha?
Lúcia perturbou-se e a custo balbuciou esta explicação:
— Chamei esta mulher para junto de mim porque tinha medo de estar só com o senhor.
— Ah!
— Ela inventou a mentira, de que eu não gostei; mas não tive ânimo de desenganá-lo!
— E por que receias estar só comigo, Lúcia?
Ela hesitou; por fim prorrompeu-lhe a voz do seio arquejante:
— Porque não posso fazer-lhe a vontade... Não! Sofro horrivelmente!
— Isto quer dizer que eu te incomodo vindo aqui.
— Ao contrário, meu Deus! É a única alegria que tenho neste mundo. Dê-me esse consolo!
Venha conversar comigo! Todos os dias!...
— Tenho agora muito que fazer: estou tratando de estabelecer-me. A tua conversa é
bastante agradável, mas falta-me o tempo!
— E nos domingos ?...
— Ora Lúcia, sejamos francos. Melhor é confessares que eu te importuno. Já sabia disso;
não me dirias nada de novo.
Quer saber o que respondeu?
— Se lhe incomoda vir aqui, eu irei vê-lo.
— Para conversar?...
Deixou pender a cabeça abatida.
— Para isso, continuei, não se incomode. É até favor não ir; porque vendo-a não me
saberei dominar, e posso causar-lhe algum horrível sofrimento.
— É justo! Servi apenas para matar um desejo! E hoje nem para isso!.. .
Ainda voltei uma vez à casa de Lúcia.
79
Era natural; à medida que eu sentia essa criatura desapegar-se de mim, agarrava-me a ela
com a ânsia do náufrago. Suspeitava que Lúcia tinha um amante. Queria desenganar-me; o acaso
favoreceu-me.
Vi entrando na sala um objeto que pela sua novidade atraiu logo a minha atenção. Era um
elegante vaso de cristal cor de leite, representando uma tuberosa; a flor que lhe servia de bocal
ostentava uma camélia soberba; o ciúme, que é instinto e faro da paixão, descobriu logo entre o pé
do vaso e o mármore do consolo a ponta de uma carta em papel rosa.
Lúcia teve um sobressalto quando entrei. Podia ser um assomo de alegria, por me ver
depois de três dias de ausência; podia ser também um movimento de contrariedade. Atribui ao
segundo motivo.
— Estavas esperando alguma pessoa?
— Já ninguém me visita.
— Por que razão?
— Os meus antigos amantes se enfastiaram de mim! disse com voz amarga.
— Virão novos! Já eles se anunciam! respondi indicando a camélia. É naturalmente pela
pessoa que te mandou esta flor, que esperas.
Lúcia ergueu os olhos surpresos e pareceu ver pela primeira vez o vaso e a camélia.
— É um lindo presente com efeito! disse ela chegando-se ao consolo. E uma flor tão bonita
não tem perfume!...
Levantando o vaso, descobriu a carta que eu entrevira, e que ela passou-me sem ter
rompido o fecho.
— Leia.
Corri os olhos pela carta; era do Cunha; insistia com Lúcia para aceitar o seu amor,
oferecendo-lhe as condições mais brilhantes que poderia desejar uma mulher na sua posição.
Enquanto lia, ela se aproximara da janela.
— Ah! que pena! exclamou rindo.
O vaso e a flor acabavam de despedaçar-se nas pedras da calçada. Lúcia tomou-me a carta
das mãos e sem ler rasgou-a friamente.
— Não desconfie; desse menos que de qualquer outro. Já foi meu amante; uma noite vi sua
mulher, que ele abandonava por minha causa, triste e pensativa. Desde esse momento deixou de
existir para mim.
Lembra-se do que me dissera o Cunha no teatro? Era assim que caluniavam essa moça;
porque também ela punha sobre o coração a máscara do capricho.
Tínhamos esquecido o Cunha e falávamos de outras coisas.
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— Decididamente, Lúcia, não queres mais saber de mim?
— Eu!... Se é preciso, suplico-lhe de joelhos que me venha ver!
Abanei a cabeça.
— Se tens um amante e desejas guardar-lhe fidelidade, é diferente; podemos ficar amigos e
ver-nos ainda de vez em quando. Mas para satisfazer um capricho pueril! Não estou disposto.
— Então se eu tivesse um amante, faria o que eu lhe peço? Viria ver-me?
— Nesse caso haveria um motivo justo, que eu respeitaria.
— Pois bem; eu tenho!
— Um amante?
— Sim!
— Quem é ele?
— Não sei. Ainda não tenho; mas terei amanhã; hoje, se quiser.
— Agora mesmo! Serei eu!
— Oh! não!
— Bem vês que não passa de um capricho. Já me tinham falado dessa tua excentricidade.
Gostas de fechar a porta aos teus amantes, quando eles menos esperam; talvez para puni-los do
prazer que lhes deste! É uma vingança!
— Aqueles que lhe falaram assim tinham razão; mas nenhum, fique certo, se queixará de o
ter eu enganado.
81
XVII
Havia mais de quinze dias que já não ia a casa de Lúcia; tinha-a encontrado três ou quatro
vezes na rua, e não lhe falara: fingia não vê-la.
A princípio custou-me não ceder àquele doce hábito; mas convencido como estava de que
essa mulher zombava de mim, e queria ver-me representar o ridículo papel de amante titular, ou
honorário, satélite de um astro que brilha para outros, paciente caudatário que as cortesãs gostam de
trazer por orgulho e vaidade, revesti-me de coragem, e quebrei de uma vez com essas relações. O
tempo é remédio soberano; os dias correram; a pouco e pouco fui-me resignando à separação.
Tinha aproveitado a minha liberdade para me preparar à vida séria. Mudara-me do hotel, e
tomara um primeiro andar na Rua da Assembléia. As passadas necessárias para fazê-lo mobiliar e
arranjar, as compras de arranjos domésticos tinham feito uma poderosa diversão que muito
concorreu para fortalecer-me na resolução que havia tomado.
Contudo a lembrança de Lúcia não se apagava; eu vivia ainda das recordações da
felicidade que ela me dera; e quando saía afagava sempre a esperança de encontrá-la. Se isto
sucedia, apesar de minha aparente indiferença, sentia uma emoção que achava ridícula e não podia
dominar. A conversa do Rochinha, ou do Cunha, me era agradável, porque dava ocasião de saber
notícias dela. Uma vez me disseram que Lúcia saía freqüentemente, e passava todos os dias pela
Rua do Ouvidor; a idéia de que ela o fazia para ter ocasiões de me ver consolou-me.
Uma manhã lia os jornais sobre a mesa do almoço, esperando que me servissem, quando o
moleque prorrompeu na sala com o ar espantado, com que correria a anunciar-me que tínhamos
fogo em casa.
— Está aí uma moça!
— Uma moça! repeti com um batimento de coração.
— O rosto dela está coberto com véu; mas eu vi!... muito bonita, sim senhor!
Quem podia ser senão Lúcia? Não me enganei. Avistando-me roçagou o véu, e disse com
um triste sorriso:
— Resisti enquanto pude: não tenho mais forças. Estou pronta para tudo.
— Para tudo? perguntei sorrindo.
— Já que é preciso para vê-lo!
— Com que ar dizes isto! Se e um sacrifício, renuncio.
— E continuará a fugir-me? Passará por mim sem olhar-me? Não; não é um sacrifício.
Preferia que nos víssemos de outra maneira; mas não é possível! O senhor quer; e o meu maior
prazer não é fazer-lhe todas as vontades?
— Vamos almoçar; passarás hoje o dia comigo.
— Só com uma condição.
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— Qual será essa condição que eu não aceite para ter o prazer de possuir-te um dia inteiro?
— É... que não há de ser hoje! disse ela enrubescendo.
— Começas de novo com os teus caprichos.
— Então não fico! replicou atando as fitas do chapéu, e com tom decidido.
— Deixa-te disto, Lúcia.
— Adeus; até amanhã.
— Está bem; aceito a condição.
— Dá-me sua palavra?
— Faço-te um juramento se quiseres.
— Não é preciso: estou satisfeita, e em paga do sacrifício, quero ser generosa.
Deu-me um beijo, um só, e na fronte.
— Então o beijo é permitido? disse eu sorrindo.
— Da minha parte unicamente; da sua, não senhor.
— Por que essa diferença? Deve haver completa igualdade.
— E não há! Se eu fico com o direito de dar, o senhor não tem o de recusar?
— Tu bem sabes que me faltaria a coragem!
— Não é culpa minha!
— E de quem é? De quem te fez tão bonita?
— Já fui! disse ela sorrindo com melancolia.
Realmente Lúcia estava mudada: tinha perdido o esmalte fresco e suave da tez; parecia
mesmo desfeita e abatida; porém isso, longe de desmerecer a sua beleza, dava-lhe certa morbidez
lânguida que a tornava ainda mais sedutora. Há dois momentos em que a rosa, a flor da beleza, tem
para mim um irresistível encanto: é quando desata as mil folhas ostentando o brilho das cores e a
régia altivez de sua coroa, e quando desfalece ao beijo ardente do sol, evaporando das pétalas
flácidas o pálido matiz e o aroma sutil.
Saí um instante depois do almoço para ir ao escritório da Companhia de Paquetes pagar o
frete de umas encomendas que enviava à minha família, e para encarregá-las à solicitude de um
empregado do vapor.
Quando voltei, a minha casa de homem solteiro tinha sofrido uma alteração completa. Os
vidros que em quinze dias já tinham adquirido uma crosta espessa dessa poeira clássica do Rio de
Janeiro, como é clássica a lama de Paris, os vidros brilhavam na sua límpida transparência entre as
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bambinelas de cassa que um armador acabava de pregar. Os móveis espanejados tinham mudado de
lugar, tomando a posição melhor e formando esse quadro harmônico, que o olhar de uma mulher
esboça com a rapidez do pensamento; porque ela tem em si o instinto da forma, como a luz encerra
a diversidade de cores que reflete sobre os objetos. Do recosto do sofá e das cadeiras pendiam
lindas cobertas a crochê; nos vasos dos consolos se expandiam ramos de flores que embalsamavam
a sala.
No meu gabinete de estudo, a desordem desaparecera ao toque mágico do condão de uma
fada hospitaleira: os livros arrumados na estante, e em seu devido lugar; os manuscritos reunidos
sob pesos de cristal; as cartas emaçadas em ganchos de metal pregados junto à mesa e ao alcance da
mão; ao lado da cadeira de braços uma cesta de palha para receber as tiras de papel, e na frente um
pequeno tapete felpudo para aquecer os pés nas noites frias.
Igual revolução no meu quarto de vestir. Sobre o toucador uma profusão de perfumarias e
pequenos objetos de fantasia. Na cômoda a roupa estava arranjada como no tempo em que minha
mãe se incumbia desse trabalho. Um dedal de ouro, um papel de botões, e preparos de costura, que
se viam sobre a cadeira numa caixinha de tartaruga, indicavam que antes da arrumação, mãozinha
ágil e habilidosa da costureira reparara os estragos do uso.
Mas eu tinha corrido toda a casa, notando essa transformação repentina, sem descobrir a
autora; já estava inquieto quando pela janela da sala de jantar, a vi na cozinha, e num estado que só
tanta beleza e graça podia salvar do ridículo. Figure uma moça vestida de ricas sedas, com as
mangas enroladas e a saia arregaçada e atada em nó sobre o meio da crinolina; com uma toalha
passada pelo pescoço à guisa de avental; vermelha pelo calor e reflexo do fogo, batendo gemas de
ovos para fazer não sei que doce. Repito: era preciso ter a faceirice e gentileza daquela mulher, para
nessa posição e no meio da moldura de paredes enfumaçadas, obrigar que a admirassem ainda.
Fui tirá-la da sua azáfama doceira, e a trouxe confusa e envergonhada. Depois que ela
reparou a desordem de seu traje, tanto quanto era possível, tomei-lhe contas severas.
— Quando pedi à senhora que passasse o dia comigo, não foi para me servir nem de
cozinheira, nem de costureira, nem de criada.
— De que posso eu servir-lhe?
— O mais grave porém não é isso: a senhora encheu a minha casa de objetos que não me
pertencem, porque não os comprei.
Ela tirou um papel do seio:
— Oh! eu o conheço!... Tudo foi comprado com o dinheiro que tirei da sua gaveta. Aqui
tem a conta. Se fiz mal em gastar sem sua ordem, ralhe comigo; suponha que eu pedi essa quantia,
que o senhor decerto não me recusaria.
Lúcia deu-me a conta que eu rasguei sem ler fazendo-a sentar nos meus joelhos, e
cobrindo-a de beijos.
— Olhe lá! Já faltou ao prometido! Mas desta vez passe; porque me perdoou. Se não se
apressasse, eu mesma lhos daria.
— Ainda está em tempo!
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— Não, senhor. Quero fazer valer a minha riqueza. Darei se me afiançar outra vez que
aprova tudo que fiz!
O ajuste foi aceito e concluído. Eram uma perfídia de Lúcia, como verá.
Estive para esquecer o nosso compromisso. Lúcia escapou-se; fitando-me com um olhar de
exprobração disse-me:
— E sua promessa!
— Não tenho forças para cumpri-la!
— E eu tenho para ceder-lhe! Pois bem; restituo sua palavra, para não obrigá-lo a faltar a
ela. Quer-me assim mesmo morta?
Lúcia deu um passo para mim. Era realmente um corpo morto e uma feição estúpida que
ela me oferecia. Repeli com vago terror. Então, serenou, e conseguiu sorrir:
— Amanhã!
Depois com a voz triste e grave acrescentou:
— Será sempre cedo!
Chegou o moleque que tinha ido à sua casa buscar um vestido; poucos instantes depois ela
apareceu com um traje fresco e risonho de que tinha, mais que nenhuma mulher, o encantador
segredo. Eu embalava-me na rede. Lúcia, depois que cansou de traquinar, fazendo-me cócegas,
cobrindo-me o rosto com as franjas e oferecendo-me entre as malhas um beijo que eu não podia
colher e se evaporava no ar, foi à estante escolher um livro, e sentou-se na esteira para ouvir-me ler.
O livro que ela trouxe era esse gracioso conto de Bernardin de Saint-Pierre, que todos
lemos uma vez aos quinze anos, quando ainda não o sabemos compreender; e outra aos trinta,
quando já não o podemos sentir. O que seduzira Lúcia foi o nome de Paulo que ela ao entregar-me
o volume mostrara sorrindo. Quando eu lia a descrição das duas cabanas e a infância dos amantes,
Lúcia deixou pender a cabeça sobre o seio, cruzou as mãos nos joelhos dobrando o talhe, como a
estatueta da Safo de Pradier que por aí anda tão copiada em marfim e porcelana.
De repente a voz desatou num suspiro:
— Ah! meu tempo de menina!
Voltei-me para ela; as lágrimas caíam-lhe em bagas; quis atraí-la, fugiu, arrebatando-me o
livro das mãos.
Escolhi outro livro para distraí-la; li a Átala de Chateaubriand, que ela ouviu com uma
atenção religiosa. Chegando a essa passagem encantadora em que a filha de Lopes declara ao jovem
selvagem que nunca será sua amante, embora o ame como à sombra da floresta nos ardores do sol,
Lúcia pousou a mão sobre os meus olhos dizendo-me:
— Não podíamos viver assim?
— Átala tinha um motivo para resistir, Lúcia!
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— E eu não tenho?
— Ela obedecia a um voto; e a virgindade lhe servia de defesa.
Lúcia respondeu-me arrebatadamente:
— Alguns espinhos que cercam a rosa, valem o veneno de certas flores? Um voto é coisa
santa; mas a dor da mãe que mata seu filho é horrível.
— Não te entendo!
Ela demorou um instante o seu olhar ardente sobre mim, e murmurou abaixando as longas
pálpebras:
— Queria dizer que se eu fosse Átala, poderia perder a minha alma para dar-lhe a
virgindade que não tenho; mas o que eu não posso, é separar-me deste corpo!
Jantamos; nunca lauto banquete foi festejado por epicuristas, como a minha modesta
colação pelos dois convivas que partilhavam o mesmo prato e bebiam no mesmo copo, rindo e
brigando de qual daria ao outro uma preferência mutuamente recusada.
Às oito horas da noite acompanhei Lúcia à casa.
Poucos momentos depois de entrar ela foi ao toucador e voltou em traje de dormir; os
cabelos soltos e uma longa camisola de linho, sem uma renda, nem um bordado.
— Já vais dormir?
— Vou deitar-me; estou fatigada; trabalhei hoje muito! respondeu sorrindo e tomando-me
pela mão. Mas podemos conversar até dez horas. Durmo cedo agora.
O seu quarto de dormir já não era o mesmo; notei logo a mudança completa dos móveis.
Uma saleta cor-de-rosa esteirada, uma cama de ferro, uma banquinha de cabeceira, algumas
cadeiras e um crucifixo de marfim, compunham esse aposento de extrema simplicidade e nudez.
A idéia que primeiro me ocorreu foi que Lúcia tivera necessidade de dinheiro, e vendera os
seus ricos trastes; isso me causou um aperto de coração.
— Por que esta mudança?
— Durmo aqui melhor. O outro quarto lá está como o senhor deixou.
— Nada lhe falta?
— Nada absolutamente. Admira-se de que me prive da minha rica mobília, para usar de
outra mais simples?
— Decerto; foi uma despesa inútil.
— Mas o senhor não sabe que posso comprar o que me parecer sem que reparem; e não
posso vender coisa alguma sem que me suponham arruinada?
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— A minha questão é da preferência que dás a esses trastes ordinários sobre os teus lindos
móveis de pau-cetim.
— Grande questão... Questão de mulher no fim de contas: capricho. Nesta cama que o
senhor acha tão feia, e neste quarto que lhe parece tão triste, o sono é doce para mim e os sonhos
alegres. Quando entro aqui, sacudo no limiar da porta, como os viajantes, a poeira do caminho; e
Deus me recebe.
Dizendo estas palavras, Lúcia ajoelhou em face do crucifixo e recolheu-se numa breve
oração mental; depois regaçou a roupa da cama e espreguiçou-se entre as alvas lençarias, com o
voluptuoso bem-estar que sente o corpo repousando depois da fadiga.
— Como é bom adormecer assim! disse-me ela pousando a cabeça no travesseiro e
fechando-me as mãos entre as suas. Fale; conte alguma história! Sou uma criança! É verdade!
— O quê?
— Não se agaste. Qual foi a primeira moça de quem o senhor gostou?
— Foi uma menina, não foi uma moça, respondi sorrindo.
— Ah ! Que idade tinha?
— Doze anos; e eu acabava de completar dezesseis.
— Oh! Conte-me como foi!
Contei; um desses idílios das primeiras flores da vida; amores infantis que balbucia o
coração ignaro, como antes balbuciara o lábio a palavra indecisa; arpejos vagos que o sopro da brisa
arranca das cordas de uma lira ainda não dedilhada. Essas primeiras impressões são tão ricas de
sentimento, que nunca o espírito penetra nelas sem achar uma melodia arrebatadora, mais viva e
mais brilhante, à medida que o homem declina para a velhice. É natural que eu falasse com
animação e entusiasmo. Lúcia cerrara as pálpebras para ouvir-me, e embalada pelas minhas
palavras pareceu ir adormecendo insensivelmente. Calei-me, admirando com respeitosa ternura o
rosto puro e cândido que entre a alvura do linho e no repouso das paixões tomara uma diáfana
limpidez.
Meus lábios roçaram apenas a tez mimosa, tanto eu receava manchar com o hálito a flor
dessa alma, que se abria na sombra e no silêncio, como o cacto selvagem de nossos campos. Nesse
momento Lúcia ergueu as pálpebras, e seu olhar vago, já nublado pelo sono, afagou-me docemente.
— Foi o dia mais feliz da minha vida! murmurou ela com a voz quase imperceptível.
Ainda hoje não posso compreender que força misteriosa me obrigou a respeitar um dia
inteiro essa mulher, que eu possuíra, e ainda apertava nos meus braços, recebendo a carícia de seu
lábio amante.
Chegando à casa, e na ocasião de dar o dinheiro para as compras, conheci que Lúcia
tinha-me enganado: a soma que eu possuía estava intata.
87
E contudo a minha suscetibilidade extrema emudeceu nesse momento. Não sei que voz
interior me disse que Lúcia tinha o direito de fazer aquilo, e eu a obrigação de respeitar a sua
vontade e agradecer-lhe.
O que outrora me parecia vileza, era já delicada atenção.
88
XVIII
Vi no dia seguinte correr de novo aquela mesma cortina de seda azul que abrira para mim,
como nuvem serena, um céu de delícias. Penetrei o templo do prazer, que eu entrara pela primeira
vez esmagado por um olhar de tão soberano desprezo. Mas não encontrei nem a antiga fragrância,
nem a atmosfera tépida e embalsamada que outrora o enchia. Estava frio e triste, como um aposento
por muito tempo privado de ar e luz.
Lúcia não proferira uma palavra desde a minha chegada. Muda e submissa obedecera ao
meu olhar; quando a toquei, teve uma comoção violenta, verdadeiro choque elétrico. Fugiu
espavorida; mas voltou logo; e caminhando para mim, entregou-se com um cínico desgarro.
Há de ter ouvido falar na sensualidade nefanda dos coveiros de cemitério, que saciavam no
cadáver das belas mulheres um desejo brutal. Não creio que esses abutres da lascívia apertassem
corpo mais gelado e insensível do que a múmia que se inteiriçava nos meus braços. Senti o frio
horror de Virgílio correr-me pela medula dos ossos.
Lúcia atravessou o aposento com o passo hirto, e saiu. Entrou alguns minutos depois. O
calor voltara à epiderme, que abrasava agora; o corpo tinha, não a doce flexibilidade que lhe era
natural, porém uma elasticidade nervosa e convulsa, que o enrolava como a cauda de uma serpente
na agonia. Em vez do seu hálito sempre perfumado, a boca exalava o bafo ardente de uma chama
interior e o fumo alcoólico de espírito fortíssimo.
— O que bebeste tu, Lúcia? perguntei-lhe inquieto.
— Sofro do estômago, bebi um gole de kirsch, respondeu com a voz trôpega.
— Que extravagância!
Ela cortou-me a palavra com um beijo de fogo; escaldou-me da lava que corria-lhe do
corpo; mas de repente repeliu-me bruscamente escondendo o rosto nas mãos:
— Não posso! É mais forte do que eu!
Soluçava como uma criança; riu depois como uma louca.
Conheci então a verdade; Lúcia estava embriagada.
A sua saída repentina fora um ato de desespero para vencer o gélido espasmo que a
marmorizava. Tinha quase esvaziado uma garrafa de kirsch. Acreditei enfim na sinceridade da
repugnância de Lúcia; renunciei de uma vez ao meu desejo. Sentia profunda compaixão por essa
mulher. O seu pranto me enterneceu; chorei com ela.
O abalo moral foi-lhe dissipando a embriaguez, até que adormeceu profundamente sobre o meu peito.
Quando acordou, Lúcia percorreu algum tempo com os olhos o aposento, como se
coligisse os vestígios esparsos de recordações esvanecidas pelo sono, até que a idéia do que se havia
passado desenhou-se lúcida no seu espírito. Então volveu para mim o olhar humilde juntando as
mãos com uma expressão suplicante.
— Logo mais terei forças! balbuciou ela. Era a primeira vez depois de tanto tempo; e não
pensei que me faltasse o ânimo.
89
— Não, Lúcia; nunca mais!
O seu rosto anuviou-se:
— Então vai abandonar-me de novo?
— Supunha que isso não passava de uma excentricidade; o meu orgulho se revoltava. Mas
há pouco o suplício horrível por que passaste me comoveu a ponto que chorei contigo.
— Chorou?... E por mim!
— Conheci que havia uma dor profunda e intensa no que me parecia ridículo capricho! Hei
de me lembrar sempre que te vi quase morta nos meus braços! Um desejo de hoje em diante seria
uma idéia assassina! Não posso, não o devo ter! És sagrada para mim; sagrada pelo martírio que te
causei; sagrada pelas lágrimas que derramamos juntos. A tua beleza já não tem influência sobre os
meus sentidos. Posso te ver agora impunemente.
Lúcia me escutava com enlevo, bebendo uma a uma as minhas palavras e o meu olhar,
como se foram um elixir poderoso que a regenerasse. Apenas me calei, desprendeu-se docemente de
meu seio, e caiu de joelhos. Ergueu-se depois grave e recolhida para dizer-me:
— Deus me abençoou!
Houve um grande silêncio, em que Lúcia, imóvel e recolhida, continuava absorta no seu
êxtase religioso, e eu contemplava-a mudo sem me animar a interrompê-la.
— Agora deves ter confiança em mim, Lúcia; explica-me a razão dessa singularidade.
— Eu mesma não sei! respondeu com ingênua simplicidade.
— Ainda receias?...
— Não! Alguma coisa me diz que eu vibro no seu coração uma corda, embora seja a da
compaixão e da piedade. Posso abrir-lhe minha alma e deixar que penetre nela. Veja se
compreende: eu não posso.
— Mas devias sentir alguma coisa?
— Sentia a morte que me invadia o corpo, enquanto eu vivia dentro dele sofrendo torturas
horríveis. Se eu tivesse ainda minha mãe expirante diante de meus olhos, amaldiçoando-me no seu
último soluço; se por algum crime infame me açoitassem nua pelas ruas, cuspindo-me às faces no
meio das vaias do povo, creio que não sentiria o que sinto nesses momentos. Por que razão?
— Entretanto houve um tempo em que, se não me engano, tu eras feliz como eu do prazer
que me davas.
— É verdade! Esse tempo foi uma eternidade de delícias para mim; desejava até, louca que
eu era!... desejava que fosse possível morrermos assim um no outro... uma só vida extinguindo-se
num só corpo! Mas passou!... Devia passar.
— Por quê?
90
— Não sei!... Quando me lembro...
Tornou-se lívida; a voz encobriu-se:
— Quando me lembro, que um filho pode gerar das minhas entranhas, tenho horror de
mim mesma!
— Não digas isso, Lúcia! Que mulher não deseja gozar desse sublime sentimento da
maternidade!
— Oh! Um filho, se Deus mo desse, seria o perdão da minha culpa! Mas sinto que ele não
poderia viver no meu seio! Eu o mataria, eu, depois de o ter concebido!
Não compreendia esse fenômeno; ainda hoje não o posso explicar senão por alguma das
misteriosas afinidades do corpo com o espírito que o habita.
— Mas que importa? continuou Lúcia. Aquelas delícias passadas não valem a felicidade
que eu sinto agora quando o vejo, quando lhe falo. Se eu pudesse viver toda a minha vida assim,
sentada nos seus joelhos, olhando-o, não pediria a Deus nada mais!
Entramos então em uma nova fase de nossa mútua existência, fase original e curiosa que
me faria rir quinze dias antes. Com efeito, quem poderia julgar possível uma amizade fraternal e
pura entre duas criaturas que meses antes trocavam as mais ardentes expansões da sensualidade?
Quem poderia conceber uma abstinência absoluta num caráter ardente, provocado todos os dias e a
todas as horas pela beleza sempre radiante de uma mulher divina, que retraçava com um olhar e um
sorriso os poemas da voluptuosidade fruída?
Nessa época se revelavam francamente em Lúcia as aspirações ingênuas para uma
juventude perdida, os sonhos vivos do passado, que desde muito tempo espontavam por vezes
através do luxo e agitação de uma vida elegante. Com a timidez de seu olhar velado pelos longos
cílios, com o modesto recato de sua graça e o seu vestido de cassa branca, Lúcia parecia-me agora
uma menina de quinze anos, pura e cândida.
Por que segredo ignoto da natureza a rosa que há pouco se ostentava no viço da
florescência, abrochara as folhas, e agora botão recente, mal ia desatando o seio? Por que mágica
força de vegetação a palmeira altiva que hasteava no vale as verdes frondes, se transformara de
repente na mimosa sensitiva!
Muitas vezes achava Lúcia cosendo e cantando à meia voz alguma monótona modinha
brasileira, que só a graça de uma bonita boca, e a melodia de uma voz fresca, pode tornar agradável.
Outras vezes passava horas inteiras esboçando um desenho, tirando uma música ao piano,
escrevendo uma lição de francês, língua que aliás traduzia sofrivelmente; ou enfim bordando ao
bastidor algum presente que me destinava.
Não saía mais durante o dia; à noite pedia-me que a levasse a algum arrabalde distante da
cidade, à Lagoa, ou ao Cosme-Velho. Partíamos de carro; parávamos nalgum lugar mais
despovoado; ela recostava-se no meu braço, e passeávamos durante uma ou duas horas. Outras
noites preferia o mar; embarcávamos num bote e vogávamos pela baía.
O seu traje habitual nestes passeios era vestido de merinó escuro, mantelete de seda preta,
e um chapéu de palha com laços azuis. Mas essa mulher tinha a beleza luxuosa que se orna a si
91
mesma, e que os enfeites, longe de realçar, amesquinham; nunca ela me parecia mais linda do que
sob essa simplicidade severa.
Um dia Lúcia chegou-se a mim com certo ar de mistério:
— Quer fazer amanhã um passeio comigo?
— Aonde?
— A São Domingos.
— Se isto te causa prazer!...
Partimos às 4 horas da madrugada numa falua, que atravessou rapidamente a baía e
levou-nos à praia de Icaraí. Não sei se ainda aí perto existe um velho casebre, escondido no mato e
habitado por uma velha e dois filhos, que nos hospedaram, ou por outra, nos deram sombra e água
fresca.
Quando Lúcia pôs o pezinho calçado com a botina de duraque preto na areia úmida da
praia, pareceu que a mobilidade e agitação das ondinhas que esfrolavam murmurando,
comunicou-se-lhe pelo contato. Em um instante chegou à casa, abraçou a velha, correu todos os
recantos, o terreiro, o quintal e o mato que se estendia em roda. Ora suspendia-se aos ramos das
árvores e colhia os frutos verdes que saboreava com delícia; ora pulava sobre a relva soltando gritos
de prazer como as aves quando atitam ao raiar da manhã.
E no meio de tudo isso voltava para mim, e me obrigava a tomar a minha parte do prazer
que ela sentia. O meio de não comer frutas verdes quando elas nos são apresentadas entre duas
linhas de pérolas e à sombra de lábios vermelhos, que fugiam furtando o beijo que prometiam? O
meio de não fazer toda a sorte de loucuras, quando um talhe esbelto suspende-se ao vosso flanco, e
uma voz aveludada murmura uma prece ao ouvido?
Almoçamos. Lúcia contentou-se com uma côdea de pão e um copo de leite, que bebeu
sentada sobre uma pedra.
Depois do almoço ela tomou-me pelo braço:
— Foi nesta casa que eu nasci, disse-me ela. Não era então velha como hoje está. Tudo
muda; tudo passa!
Mostrou-me o lugar onde seu pai costumava trabalhar, onde sua mãe cosia; lembrava-se de
todos os cantos, do lugar de cada móvel, da idade de cada fruteira, dos menores incidentes passados
nesta área de terra.
— Faz sete anos que deixei este lugar; parece-me que foi ontem. Quando venho aqui
alguma vez, acho ainda viva e fiel a minha infância tão feliz! Recorda-se da Glória? De lá olhei
para esta praia. O senhor estava perto de mim. Mal pensava que três meses depois aqui viríamos
juntos!
— E o que é feito de tua família? Como a perdeste? Nunca me quiseste dizer nada a este
respeito.
92
— Toda a minha vida lhe pertence; o passado como o futuro. Mas aqui não teria ânimo:
aqui vive a minha infância, que eu respeito. Não quero que estes lugares, que me viram tão alegre,
me vejam sofrer, tendo-o junto de mim. Não falemos nisso agora; suponho que dormi estes sete
anos e acordei hoje de repente.
Sentamo-nos sobre a relva coberta de flores e à borda de um pequeno tanque natural, cujas
águas límpidas espelhavam a doce serenidade do céu azul. Lúcia tirou do bolso o seu crochê e o
novelo de torçal, e continuou uma gravata que estava fazendo para mim. Enquanto ela trabalhava,
eu arrancava as flores silvestres para enfeitar-lhe os cabelos; ou arrastava-me pela relva para
beijar-lhe a ponta da botina que aparecia sob a orla do vestido.
Deixei cair algumas pedras no tanque. Não sei que impressão triste faz sobre o espírito a
plácida imobilidade da onda, que desafia o homem a quebrar a quietude da natureza. Os olhos
acompanham então com uma indefinível satisfação os círculos concêntricos que surgem à tona e
vão-se dilatando até correr nas margens do lago.
Ia atirar uma nova pedra, quando Lúcia que eu supunha ocupada com o seu trabalho,
reclinou-se para mim, de mãos juntas, e disse-me com uma voz angustiada:
— Não! Coitadinha! Tenha pena dela!
Encarei com Lúcia: seu rosto traía uma aflição profunda. De surpreso, deixei cair a pedra.
— Oh! Como deve sofrer! balbuciou ela mostrando-me com a mão trêmula a água que se
toldava e enegrecia.
— Que é isto? Em que estás pensando, Lúcia? disse apertando-lhe as mãos com força.
Volveu para mim os olhos vagos; contemplou-me um instante e riu:
— Uma loucura!... Não sei como me veio semelhante idéia! Vendo esta água tão clara
toldar-se de repente, pareceu-me que via minha alma; e acreditei que ela sofria, como eu quando os
sentidos perturbam a doce serenidade de minha vida.
Depois de uma pausa continuou:
— Naquele dia... não soube explicar-lhe... É isto! Veja! A lama deste tanque é meu corpo:
enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida!
Acredite ou não, Lúcia acabava de me revelar naquela imagem simples um fenômeno
psicológico que eu nunca teria suspeitado.
93
XIX
Talvez não se lembre de um Jacinto, cujo nome, então desconhecido para mim, ouvira uma
vez da boca de Lúcia.
Era um homem de 45 anos; feição comum e espírito medíocre. Encontrava-o agora todos
os dias em casa de Lúcia; e desde a primeira vez antipatizara com a sua enjoativa figura.
— Quem é este senhor? perguntei a Lúcia.
Ela perturbou-se.
— É um sujeito que costuma tratar dos meus negócios.
— Que importantes negócios são os teus que eu não me possa incumbir deles?
— Compras... Não tenho outros. Para que incomodá-lo com isso?
— Também sou ciumento: não desejo que ocupes outra pessoa além de mim.
— Esse homem é quase um criado.
A palavra produziu o seu efeito; desde que o Jacinto desceu ao mister de homem
assalariado, não fiz mais reparo na sua assiduidade. Quase sempre o encontrava na escada interior,
descendo quando eu subia; dava-lhe tanta atenção como ao carroceiro que enchia as talhas d'água,
ou ao cozinheiro que saía a compras.
Tínhamos partido de São Domingos na véspera às oito horas da noite; às onze deixara
Lúcia em sua casa, desculpando-me de não ir vê-la no dia seguinte de manhã, por causa de algumas
visitas de rigor.
Sucedeu porém que, voltando de uma dessas visitas, o cocheiro do tílburi passasse pela
porta de Lúcia. Não pude resistir ao desejo de vê-la, apertar-lhe a mão e saber como havia passado a
noite. Cheguei à sala de jantar sem encontrar viva alma; supondo achar Lúcia na sala, dirigi-me para
ali, pelo corredor particular. Abafei os passos, para surpreendê-la.
O surpreendido fui eu, ouvindo vozes na alcova, onde tanto havia, já ninguém entrava.
Enfiei o olhar pela fresta que deixava a sanefa de tafetá na porta envidraçada; e o que vi me fez
empalidecer. A pessoa que estava com Lúcia era o Jacinto; ela abanava a cabeça; ele sorria com um
ar de estúpida satisfação, e abria lentamente uma nojenta carteira de couro da Rússia.
Corri o aposento com uma vista rápida e ansiada: o leito estava desfeito e os móveis em
desordem. O Sr. Jacinto tirara da carteira um maço de bilhetes do banco, que Lúcia escondera no
seio com um expressivo gesto de contentamento. Não havia dúvida possível; as provas da infâmia
eram evidentes; e para cúmulo do cinismo, o preço depois de regateado fora pago à vista. Uma
parede que desabasse não me atordoaria como aquela cena a que eu acabava de assistir. Não sei
quanto tempo fiquei ali, atirado contra a porta, sem sentidos nem espírito, somente com a
consciência de uma imensa dor. Quando voltei a mim, a alcova estava deserta; o Jacinto tinha
partido, e Lúcia cosia no toucador, cantando a meia voz. Hesitei se devia fugir para nunca mais ver
semelhante monstro de mulher, ou se ficaria para lançar-lhe em rosto a sua ignomínia.
94
Conhecendo o meu passo, ela jogou de si a costura, e precipitou-se para mim; trazia o
sorriso orvalhado de carícias, o olhar cheio de candura.
— Infame!
A indignação e o desespero que fermentavam no meu seio borbotaram nessa única palavra,
grito e soluço de uma angústia cruel. Lúcia tornou-se lívida; vacilou. Com um supremo esforço
dominando a vertigem que a tomava, cobriu-me com um olhar frio, cheio de tanta dignidade e
altivez, que me colou imóvel sobre o chão. Assim pasmo e quedo, vi-a atravessar com lentidão a
sala e desaparecer detrás de uma porta, que se fechou surdamente. Pareceu-me ouvir selar a lousa
do túmulo, onde eu acabasse de sepultar uma porção de minha alma.
Lancei-me pelas ruas desatinado. Às quatro horas da tarde ainda eu vagava sem destino.
O Sá passava no seu tílburi; viu-me e parou:
— Que milagre é este: ressuscitaste!
— Não me fales nisso!
— Ah! estás apenas em convalescença; mas desta vez incumbo-me de curar-te, para que
não tenhas nova recaída.
— Asseguro-te que não há mais perigo.
— Se não me engano, ainda não jantaste.
— Nem quero.
— Vem jantar comigo; entrarás imediatamente no regime higiênico que pretendo
receitar-te.
Tomou as rédeas do cocheiro, que seguiu a pé, e ofereceu-me um lugar no tílburi.
Mais tarde Sá interrogou-me sobre o que se tinha passado; porém recusei constantemente
satisfazer a sua curiosidade. Para que ele compreendesse o meu sofrimento, fora mister contar-lhe
as minhas relações íntimas com Lúcia; e era esse mistério que invencível pudor d'alma não me
deixava expor a outros olhos, fossem eles de um amigo.
Achei-me num estado de apatia moral; tinha medo da iniciativa, porque vagamente
pressentia que ela me arrastaria de novo à casa de Lúcia, quando não fosse senão para ter o agro
prazer de insultá-la com o meu desprezo. Nessa situação era natural que Sá não encontrasse a menor
resistência no que ele chamava o regime higiênico da minha paixão.
Durante três dias corremos os arrabaldes da cidade.
Passávamos uma tarde a cavalo por Santa Teresa na direção da Caixa d'Água, quando
vimos parado defronte de uma pequena casa, reparada de novo, o Jacinto. Esse homem me atraía,
pelo ímã irresistível de Lúcia; e entretanto eu o detestava.
— Pertence-lhe esta casa, Sr. Jacinto? disse-lhe Sá respondendo à cortesia.
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— Não, senhor. Pertence a uma pessoa do seu conhecimento, à Lúcia.
— Como! Lúcia vem morar numa casa térrea e de duas janelas? Não é possível.
— Também eu não acreditei quando ela me falou nisso! Cuidei que estava brincando;
porém é negócio sério.
— Então comprou esta casa?
— E mandou prepará-la. Já está mobiliada e pronta. Devia mudar-se hoje; não sei que
transtorno houve. Ficou para a semana!
— Está bem! São luxos de passar o verão no campo! Não lhe dou um mês que não esteja
arrependida, e não volte para a sua casa da cidade.
— Para essa, há de ser difícil, disse o Jacinto com um sorriso.
— Por que razão?
— Vendeu-me o arrendamento e toda a mobília.
— Que diz!
— Na quinta-feira fechamos o negócio. Dei-lhe um conto de réis de sinal. Porém o mais
interessante é que mandou fazer leilão de tudo quanto possuía, inclusive jóias e roupa.
— Terá ela caído na miséria?
— Qual! Tem perto dos seus cinqüenta contos e quer gozar da vida tranqüilamente.
Doidice; podia fazer uma fortuna, e ajudar os outros.
O Jacinto cumprimentou e desceu a ladeira. A conversa que acabava de ouvir me tinha
completamente perturbado; enquanto Sá aproximava-se do portão para examinar o jardim, ficara eu
imóvel e perplexo. Por fim, impelido por uma força superior, segui precipitadamente o homem que
levava consigo o sossego e tranqüilidade do meu espírito.
Alcancei-o junto aos arcos. Procurei o pretexto do aluguel da casa em que Lúcia morara, e
obtive a narração minuciosa do que se passara. Aquela desordem do leito não fora outra coisa mais
que o exame de um comprador de trastes, que antes de fechar o negócio deseja conhecer o estado da
mercadoria.
Corri à casa de Lúcia.
— Sofri muito, ainda sofro; mas sinto a necessidade de perdoar, disse-me ela grave e
melancólica.
Nem um transporte de alegria, nem um sobressalto de surpresa por ver-me chegar
arrependido e suplicante. Recebeu-me com uma serena placidez e um olhar de meiga exprobração:
— Não é generoso ofender a quem não sabe e não pode repelir a ofensa.
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Era estranha para mim a expressão de calma e serena dignidade que se difundia pelo seu
rosto e por toda a sua pessoa; alguma vez já vira passar-lhe na fronte um reflexo de nobre altivez,
mas de relance, como a eletricidade que lambe a face da nuvem. Naquele momento porém a luz
irradiava de um foco íntimo; e na feição, como na atitude de Lúcia, aparecia profundamente
impresso o pudor de uma alma ressentida.
Pela primeira vez a mulher submissa, que temia ofender-me, mostrando-se ofendida de
minhas injustiças, conservava contra mim uma queixa, e assumia o direito de perdoar. Admirando,
aceitava contudo essa nova situação, como tinha aceito todas as gradações por que passara a sua
existência depois que nos conhecíamos.
— Duvidou de mim! disse Lúcia fitando-me com os seus grandes olhos límpidos.
Ia balbuciar uma desculpa; ela atalhou-me.
— Não! A mulher de quem duvidou já não existe, morreu! É uma história bem triste!
Ouça!
Lúcia ficou um momento absorvida nas suas recordações; afinal chegando um banquinho
de tapete, sentou-se aos meus pés:
— Deixamos São Domingos para vir morar na corte; tinham dado a meu pai um emprego
nas obras públicas. Vivemos dois anos ainda bem felizes. À noite toda a família se reunia na sala;
eu dava a minha lição de francês a meu mano mais velho, ou a lição de piano com minha tia. Depois
passávamos o serão ouvindo meu pai ler ou contar alguma história. Às nove horas ele fechava o
livro, e minha mãe dizia: «Maria da Glória, teu pai quer cear». Levantava-me então para deitar a
toalha.
— Maria da Glória!
— É meu nome. Foi Nossa Senhora, minha madrinha, quem mo deu. Nasci a 15 de agosto.
Por isso todos os anos vou levar-lhe um trabalho de minhas mãos, e pedir-lhe que me perdoe.
Outrora pedia-lhe que me fizesse feliz; toda a minha família me acompanhava; agora vou só e
escondida.
— E que é feito de tua família?
— Lembra-se da febre amarela em 1850?
— Não estava aqui.
— É verdade! Foi um ano terrível. Meu pai, minha mãe, meus manos, todos caíram
doentes: só havia em pé minha tia e eu. Uma vizinha que viera acudir-nos, adoecera à noite e não
amanheceu. Ninguém mais se animou a fazer-nos companhia. Estávamos na penúria; algum
dinheiro que nos tinham emprestado mal chegara para a botica. O médico, que nos fazia a esmola
de tratar, dera uma queda de cavalo e estava mal. Para cúmulo de desespero, minha tia uma manhã
não se pôde erguer da cama; estava também com a febre. Fiquei só! Uma menina de 14 anos para
tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não enlouqueci.
Lúcia apertou a cabeça com as mãos, como se ainda temera que a razão lhe fugisse.
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— Tudo quanto era possível, meu Deus, sinto que o fiz. Já não dormia; sustentava-me com
uma xícara de café. Nalgum momento de repouso ia à porta e pedia aos que passavam. Pedia para
meu pai enfermo, e para minha mãe moribunda, não tinha vexame. Uma tarde perdi a coragem; meu
irmão estava na agonia, minha mãe despedira-se de mim, e Ana, minha irmãzinha, que eu tinha
criado e amava como minha filha, já não dava acordo de si. Passou um vizinho. Falei-lhe; ele me
consolou e disse-me que o acompanhasse à sua casa. A inocência e a dor me cegavam:
acompanhei-o.
Lúcia fez um esforço para continuar:
— Esse homem era o Couto...
— Ah!
— Ele tirou do bolso algumas moedas de ouro, sobre as quais me precipitei, pedindo-lhe
de joelhos que mas desse para salvar minha mãe; mas senti os seus lábios que me tocavam, e fugi.
Oh! Não posso contar-lhe que luta foi a minha: três vezes corri espavorida até à casa, e diante
daquela agonia sentia renascer a coragem, e voltava. Não sabia o que queria esse homem; ignorava
então o que é a honra e a virtude da mulher; o que se revoltava em mim era o pudor ofendido.
Desde que os meus véus se despedaçaram, cuidei que morria; não senti nada mais, nada, senão o
contato frio das moedas de ouro que eu cerrava na minha mão crispado. O meu pensamento estava
junto do leito de dor, onde gemia tudo o que eu amava neste mundo.
Lúcia escondeu o rosto nos meus joelhos e emudeceu. Quando levantou a fronte,
implorava com as mãos juntas e o olhar súplice. O quê? O perdão de sua primeira falta?
Não sei. Faltaram-me as palavras para consolar dor tão profunda: beijei Lúcia na face.
— Obrigada! exclamou ela; obrigada! Alguma coisa me diz que mereço este consolo. Terei
forças para concluir. O dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida de meu pai e
trouxe-nos um raio de esperança. Quase que não me lembrava do que se tinha passado entre mim e
aquele homem; a consciência de me ter sacrificado por aqueles que eu adorava, fazia-me forte.
Demais, um esquecimento profundo, só explicável pela alheação completa do espírito, ocultava-me
a triste verdade. Devia compreendê-la, e de que modo, ó meu Deus!
Como impelida por um choque elétrico, Lúcia ergueu-se galvanizada por súbita e violenta
recordação.
— Ainda vejo! As melhoras foram aparentes! Meus dois irmãos acabavam de expirar,
minha tia entrava na agonia, minha mãe tivera um novo acesso. Felizmente já meu pai estava em
convalescença, e saiu para tratar do enterro. Ele não tinha dinheiro, apresentei-lhe as últimas
moedas de ouro que me restavam. «Quem te deu este dinheiro?... Roubaste?...» Contei-lhe tudo;
tudo que eu sabia na minha inocência. Ele compreendeu o resto. Expulsou-me!
— A ti que lhe salvaste a vida?
— Meu pai julgava que eu tinha um amante e iria viver com ele! A não ser assim, exporia
sua filha a morrer de fome? Saí de casa. O único ente que me sorriu e me abraçou por despedida foi
o anjinho que Deus me dera por irmã e conforto. Sentei-me na calçada. Era bastante tarde já,
quando uma mulher que se recolhia me perguntou o que fazia ali àquelas horas. «Perdi meu pai e
minha mãe, respondi, não tenho onde viver». Jesuína... Era ela... levou-me consigo. Não me esqueci
dos meus. A força de rogos e instâncias Jesuína mandava constantemente à casa saber notícias e
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levar os socorros necessários: nada faltou, nem médico, nem enfermeiros. A paz voltou enfim; e eu
tive o supremo alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha irmã.
Jesuína, o senhor adivinha o que foi ela, tinha posto um preço aos seus serviços; não sei se a
primeira humilhação custou mais do que a segunda; mas o sacrifício devia se consumar, porque não
tive mão que me amparasse. A minha felicidade estava destruída; cuidei que não havia maior
infâmia do que a minha. Resolvi viver para tranqüilidade e ventura de uma família inocente da
minha culpa Quinze dias depois de expulsa por meu pai era... o que fui.
O sorriso pálido, que contraiu o rosto de Lúcia, parecia despedaçar-lhe a alma nos lábios:
—Sabe agora o segredo da cupidez e avareza de que me acusavam. Encontram-se no Rio
de Janeiro homens como o Jacinto, que vivem da prostituição das mulheres pobres e da devassidão
dos homens ricos; por intermédio dele vendia quanto me davam de algum valor. Todo esse dinheiro
adquirido com a minha infâmia era destinado a socorrer meu pai, e a fazer um dote para Ana.
Jesuína continuava a servir-me. Minha família vivia tranqüila, e seria feliz se a lembrança do meu
erro não a perseguisse. Nisto uma moça quase de minha idade veio morar comigo; a semelhança de
nossos destinos fez-nos amigas; porém Deus quis que eu carregasse só a minha cruz. Lúcia morreu
tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes. Meu pai leu no jornal o
óbito de sua filha; e muitas vezes o encontrei junto dessa sepultura onde ele ia rezar por mim, e eu
pela única amiga que tive neste mundo.
Morri pois para o mundo e para minha família. Foi então que aceitei agradecida o
oferecimento que me fizeram de levar-me à Europa. Um ano de ausência devia quebrar os últimos
laços que me prendiam. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua
filha prostituída. Eles tinham me perdoado. Quando voltei, só restava de minha família uma irmã,
Ana, meu anjo da guarda. Está num colégio educando-se.
Eis a minha vida. O que se passava em mim é difícil de compreender, e mais difícil de
confessar. Eu tinha-me vendido a todos os caprichos e extravagâncias; deixara-me arrastar ao mais
profundo abismo da depravação; contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida
íntima, sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam. Os homens que se
chamavam meus amantes valiam menos para mim do que um animal; às vezes tinha-lhes asco e
nojo. Ficaram gravados no meu coração certos germes de virtude... Essa palavra é uma profanação
nos meus lábios, mas não sei outra. Havia no meu coração germes de virtude, que eu não podia
arrancar, e que ainda nos excessos do vício não me deixavam cometer uma ação vil. Vendia-me,
mas francamente e de boa-fé; aceitava a prodigalidade do rico; nunca a ruína e a miséria de uma
família.
Aquele esquecimento profundo, aquela alheação absoluta do espírito, que eu sentira da
primeira vez, continuou sempre. Era a tal ponto que depois não me lembrava de coisa alguma;
fazia-se como que uma interrupção, um vácuo na minha vida. No momento em que uma palavra me
chamava ao meu papel, insensivelmente, pela força do hábito, eu me esquivava, separava-me de
mim mesma, e fugia deixando no meu lugar outra mulher, a cortesã sem pudor e sem consciência,
que eu desprezava, como uma coisa sórdida e abjeta.
Mas horrível era quando nos braços de um homem este corpo sem alma despertava pelos
sentidos. Oh! Ninguém pode imaginar! Queria resistir e não podia! Queria matar-me trucidando a
carne rebelde! Tinha instintos de fera! Era uma raiva e desespero, que me davam ímpetos de
estrangular o meu algoz. Passado esse suplício restava uma vaga sensação de dor e um rancor
profundo pelo ente miserável que me arrancara o prazer das entranhas convulsas!
Comovida e lacrimosa, ela atirou-se ao meu peito, e enlaçou-me com os braços trêmulos:
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— Perdão! Houve um momento bem rápido em que o odiei também! Como sofri, meu
Deus! Devia resgatar essa dor a felicidade que pela dor havia perdido!
Lúcia concluindo essa narração, que a fatigara em extremo, enxugou as lágrimas e deu
algumas voltas pela sala.
— Se eu ainda tivesse junto de mim todos os entes queridos que perdi, disse-me com
lentidão, veria morrerem um a um diante de meus olhos, e não os salvaria por tal preço. Tive força
para sacrificar-lhes outrora o meu corpo virgem; hoje depois de cinco anos de infâmia, sinto que
não teria a coragem de profanar a castidade de minha alma. Não sei o que sou, sei que começo a
viver, que ressuscitei agora. Ainda duvidará de mim?
— Tu és um anjo, minha Lúcia!
100
XX
Às cinco horas da manhã estava de pé, vestindo-me para ir buscar Lúcia.
Na véspera ao despedir-se de mim ela me dissera:
— Amanhã mudo-me. Venha-me buscar ao romper do dia. Desejo... careço de entrar
apoiada ao seu braço na casa onde vou viver a minha nova existência.
Achei-a pronta e esperando-me; os vestígios da comoção violenta que haviam produzido as
amargas recordações, desapareciam sob a plácida serenidade que reslumbrava de sua alma e dava à
sua beleza uma suave limpidez.
Partimos a pé, com a fresca da manhã; fizemos um dos mais belos passeios de que se pode
gozar no Rio de Janeiro. A casa ainda estava fechada: o preto que a guardava veio abrir-nos o
portão; corremos o jardim colhendo flores, enquanto se arejavam as salas para receber-nos. Os
cômodos eram suficientes para duas pessoas; Lúcia devia morar com sua irmã, que ia sair do
colégio.
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Apesar da revelação da véspera, continuava a dar a Lúcia esse doce nome, que estava tão
habituado a pronunciar. Uma vez porém ela olhou-me com uma expressão de mágoa:
— Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria!
Desde então quando eu pronunciava esse nome, sua alma tinha enlevos, e ela acompanhava
o movimento de meus lábios estremecendo de gozo, como se todo o seu corpo sentisse uma doce
carícia.
— Quando me chamas assim, Paulo, murmurava ela, parece-me que tu me embebes e me
afagas num só e imenso beijo que me envolve toda
Também a partir daquele momento ela sentia um prazer indizível em articular o meu nome,
que seus lábios às vezes desfolhavam num sorriso, e outras debulhavam lentamente, letra por letra,
como um favo de mel, que estilassem gota a gota. Nunca Lúcia (quero chamá-la assim ainda,
porque foi esse o primeiro nome que amei, e que ainda amo) nunca Lúcia deixara o tratamento
cerimonioso que me dava, mesmo no mais íntimo das nossas relações. Nesse dia porém, de repente,
sem vexame e sem o menor esforço, começou a atuar-me.
Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas, pão e leite cru: ainda não havia preparos
de cozinha, nem fogo. Por volta de onze horas do dia chegou a criada, com uma menina de doze
anos, linda e mimosa como um anjinho de Rafael. Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de
ter uns longes de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando
os laços de sangue que existiam entre ambas; mas o instinto de seu coração fizera adivinhar à pobre
órfã um amor quase materno na afeição ardente e apaixonada que lhe votava Lúcia.
Às seis horas da tarde deixei as duas irmãs já definitivamente instaladas no seu modesto
retiro.
Continuei a visitá-las todos os dias, mas ao cair do dia. Fora Lúcia quem regulara estas
visitas.
— Tens agora o teu escritório, e eu preciso trabalhar para viver; além disso quero ensinar a
Ana o pouco que sei. Não podemos estar todo o dia juntos. Vem ver-me à tarde, à hora da
ave-maria. Passaremos as noites no jardim, ou passeando. No domingo porém jantarás sempre
comigo; se não vieres, sei que não terei fome.
Quando a noite estava bonita, íamos os três até a Caixa-d'água, ou até os Dois Irmãos,
gozar da frescura das árvores e da água corrente. Lúcia reclinava-se ao meu braço, e eu dava a outra
mão livre a Ana. Assim caminhávamos, quase sempre mudos e silenciosos, contemplando a beleza
das cenas que se desenrolavam aos nossos olhos, ou absorvidos em nossos pensamentos íntimos.
Quando Ana soltava a minha mão para correr diante de nós com a inquieta travessura de sua idade,
Lúcia erguia-se na ponta dos pés, e suspirava-me ao ouvido alguma palavra terna, alguma doce
confidência de sua alma.
— Sou feliz! dizia-me uma noite, muito feliz! Deus se compadeceu de mim dando-me essa
força de vontade que me faz separar de minha vida o tempo que não vivi. Ele me aparece como um
sonho, como uma nuvem sombria que se vai sumindo.
Outras noites nos sentávamos sobre as pedras do caminho, e eu, respondendo às perguntas
de Ana, falava-lhe da natureza, das flores, das árvores, das estrelas, com o entusiasmo e a poesia
que as belas criações de Deus despertam em nossa alma.
102
— Fala ainda! balbuciava Lúcia ao meu ouvido, quando me calava. Fala! É tão bom
ouvir-te.
Era unicamente aos domingos que eu tinha um momento de estar só com Lúcia. Então ela
tomava-me a cabeça que escondia no seio com um anelo de ternura; fechava-me os olhos, e eu
sentia os seus lábios roçarem o meu rosto, tão de leve como as tranças de seus cabelos; por fim
olhava-me, ora sorrindo, ora séria e absorvida nos seus pensamentos.
— Isto não pode durar muito! É impossível! murmurava como se respondesse a uma
reflexão íntima.
— Por que razão, Maria?
— Por quê? Porque não se goza da bem-aventurança na terra.
À exceção desses raros instantes, sua irmã não nos deixava, e em presença dela Lúcia não
me permitia uma carícia, por mais inocente que fosse. O dia se passava ouvindo Ana tocar, vendo-a
brincar, e brincando com ela. Éramos três crianças; e delas talvez a mais moça fosse a que mais
juízo tivesse naqueles alegres folguedos.
Uma tarde, havia poucos instantes que eu tinha chegado, quando Lúcia tomou-me pela
mão, e levou-me ao seu toucador.
— Não entendo de negócios, me disse abrindo uma gaveta; e não sei pedir senão a ti.
Toma; é a escritura de compra desta casa, que pertence a Ana: há de ser preciso pagar décima. Tira
do dinheiro destes vales; do resto comprarás apólices em nome dela.
Examinei os papéis que Lúcia me dera; representavam um valor de mais de cinqüenta
contos de réis; dez no prédio, o resto em dinheiro.
— E tu com que ficas? Longe de mim censurar a tua generosidade, minha boa Maria; mas
não é justo que te sujeites, a passar privações.
— Eu também tenho a minha fortuna! disse-me sorrindo.
Mostrou-me uma carteira, que eu lhe tinha dado.
— Queres ver? Olha! Foste tu que ma deste, Paulo! Guardei-a para o tempo em que fosse
digna dela. Quando eu te agradecia então, nem suspeitavas que te agradecia pelo futuro, por este
tempo em que não me peja, ao contrário tenho orgulho, de viver por ti e para ti.
A carteira continha pequenos maços de notas, com o algarismo e uma data escrita no
rótulo.
— Não sei o que quer dizer isto!
— Não te lembras, quando ias à gavetinha do meu toucador? Aí está o que me davas, dia
por dia. Compreendes agora?
— Mas isto é uma bagatela; não é uma fortuna!
103
— Chega-me; demais, eu trabalho, e quando alguma vez precisar, não terei vergonha de
pedir-te. Verás.
— O que me parece de eqüidade é dividires esta soma com tua irmã, e guardares o resto.
Ela pode casar, seguir seu marido... Quem sabe o que sucederá?
— Tudo quanto quiseres, Paulo, menos isso. Não tenho outra vontade que não seja a tua,
mas estou certa que me hás de compreender e consentir. O que me custou tantas angústias, e tantas
humilhações, não me pode pertencer, não. Só uma coisa justifica essa fortuna, é o motivo santo por
que me vendi para adquiri-la. Ana pode gozar dela sem remorso e sem vexame, porque não saberá
donde lhe vem; a mim amargaria o pão amassado com tanto fel! Não achas que eu tenho razão?
— Maria, meu anjo, não fales nisso mais nunca! Faze o que quiseres; eu aprovo tudo.
— Deixa-me acabar. Agora só vivo, e só quero viver do que me deste; porque a minha
coragem, o meu trabalho, tudo é inspiração tua. O dinheiro pois que ganhar com minhas mãos,
ainda me vem de ti! Não possuo hoje um objeto, a coisa mais insignificante, que tenha outra
origem. É talvez uma superstição; mas quero conservá-la.
Ao despedir-me nessa noite Lúcia, como para dar-me uma prova da sua sinceridade,
disse-me:
— Paulo, traze-me amanhã quando vieres uma caixinha sortida de linhas e agulhas.
Era uma ninharia; mas era a primeira coisa de valor pecuniário que ela me pedia.
Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência tão agitada, durava cerca de um
mês. Nada perturbava a serenidade de Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo
adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e
profundo letargo. Lúcia tinha então 19 anos; mas o seu coração puro e virgem tinha apenas a idade
do botão de rosa na manhã do dia em que deve florescer, ou a idade do casulo quando a ninfa vai
fendê-lo, desfraldando as tenras asas.
Como as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado, trazem ainda nas asas o
aroma das árvores exóticas em que pousaram nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a
elegância e a distinção que se tinham por assim dizer impresso e gravado na sua pessoa. Fora disto,
ninguém diria que essa moça vivera algum tempo numa sociedade livre. As suas idéias tinham a
ingenuidade dos quinze anos; e às vezes ela me parecia mais infantil, mais inocente do que Ana
com toda a sua pureza e ignorância.
Talvez a senhora julgue isso impossível; mas é a verdade. Se não fosse a originalidade
dessa fase de uma vida que em quatro meses passara aos meus olhos por tão profunda revolução,
não teria nada que lhe contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo de minhas reminiscências.
Quis pintar-lhe o que vi: a incubação de uma alma violentamente comprimida por uma
terrível catástrofe; a vegetação de um corpo vivendo apenas pela força da matéria e do instinto; a
revelação súbita da sensibilidade embotada pelos choques violentos que partiram o estame de uma
infância feliz; a floração tardia do coração confrangido pelo escárnio e pelo desprezo; finalmente a
energia e o vigor do espírito que surgia, soldando por misteriosa coesão os elos partidos da vida
moral e continuando no futuro a adolescência truncada.
104
Quantas vezes absorto na admiração que me causava esse fenômeno, não acompanhava
com um olhar pasmo e surpreso os movimentos de Lúcia brincando com a irmã, e criança como ela
na expansão da beleza que eu vira radiar no mundo com todas as graças e encantos da mulher!
Quantas vezes desesperado pela naturalidade do seu gesto e pela ingênua simplicidade de suas
palavras, que excluíam a mais leve suspeita de afetação, não pensava comigo: «Esta mulher ou é um
demônio de malícia, ou um anjo que passou pelo mundo sem roçar as suas asas brancas!»
Se ela surpreendia o meu olhar perscrutador, sorria, e caminhando para mim, movia
lentamente a cabeça:
— Não compreendes, Paulo? Também eu não compreendo. Quem me fez menina assim ?...
Devo-te parecer ridícula. Eu, que desejo ter para Ana a gravidade de mãe, torno-me mais travessa
do que ela. Mas que queres? É preciso que eu brinque... como as cigarras hão de cantar daqui a um
ano quando acordarem!
O jardim da casa de Lúcia era dividido, por um gradil de madeira, da chácara vizinha. Isso
a desgostara desde o primeiro dia; e era sua intenção fazer passar um muro que ocultasse às vistas
estranhas o seu modesto retiro; um sentimento de delicadeza retardara só a realização desse projeto.
As moças daquela chácara tinham pouco depois de sua mudança procurado entreter relações de
vizinhança; e quase todas as tardes vinham conversar com Ana.
Lúcia quis logo impedir essa amizade, mas não teve ânimo de privar sua irmã de tão
inocente distração; contentou-se de sua parte em se esquivar aos avanços das vizinhas, retribuindo
com polidez as suas saudações. As instâncias porém foram tão repetidas e tão amáveis, que, apesar
de sua modesta reserva, Lúcia não pôde deixar algumas vezes de responder às palavras que lhe
dirigiam. Demais, elas tinham achado o caminho de seu coração; com uma liberdade censurável
começaram a pedir-lhe pequenos favores: hoje era a muda de uma flor, amanhã o molde de um
vestido, depois o desenho de um bordado. Lúcia, que não aceitava coisa alguma do mundo, não
sabia recusar um serviço.
Uma tarde ela estava conversando comigo, quando Ana veio pedir-lhe em nome da mais
moça das vizinhas, sua predileta, que lhe fosse ensinar um ponto de crochê.
— Tu não sabes, Ana?
— Mas não sei como tu, maninha.
Lúcia aproximou-se do gradil; tomou das mãos da moça o fio e a agulha e teceu com
agilidade e destreza uma carreira de malhas, acompanhando o movimento rápido de seus dedos
afilados com as explicações precisas. Como isto não bastasse tirou do braço uma pulseira de contas
tecida por ela e deu-a para servir de modelo.
Nessa ocasião adiantavam-se por entre as árvores as outras moças acompanhadas de um
homem, cujo rosto não pude ver logo por entre a folhagem. Lúcia, atenta aos esforços que fazia sua
discípula para acertar, não reparou nessa circunstância.
O grupo parou a alguma distância; eu reconheci o Couto no momento em que se adiantava
com um movimento de espanto. Corri para fazer Lúcia retirar-se antes de vê-lo; mas estava distante,
e quando cheguei, já a mais velha das moças se tinha aproximado, e arrancando a pulseira das mãos
de sua irmã, atirou-a por cima da grade:
— Não toques em coisa que pertença a esta mulher! É uma perdida!
105
Lúcia tinha erguido a cabeça no primeiro instante de surpresa; nada porém perturbava a
serenidade e quietude de seu rosto iluminado por uma doce altivez; circulou com um olhar límpido
os atores desta cena, como se lhes pedisse a explicação do desagradável incidente; e tomando Ana
pela mão e passando o braço pelo meu, afastou-se com uma dignidade meiga e nobre.
Contudo pensei que esse sossego era aparente, e que sua alma devia ter sido traspassada
por aquele ultraje. Ela respondeu à interrogação muda do meu olhar murmurando-me ao ouvido
para que sua irmã não a ouvisse:
— Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do coração!
Perdoa-lhes, Paulo.
E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma luz divina, parecia abrir o céu aos
arroubos de sua alma.
106
XXI
Era um domingo.
O novo ano tinha começado. A bonança que sucedera às grandes chuvas trouxera um dos
sorrisos de primavera, como costumam desabrochar no Rio de Janeiro entre as fortes trovoadas do
estio. As árvores cobriam-se da nova folhagem de um verde tenro; o campo aveludava a macia
pelúcia da relva, e as frutas dos cajueiros se douravam aos raios do sol.
Uma brisa ligeira, ainda impregnada das evaporações das águas, refrescava a atmosfera. Os
lábios aspiravam com delícias o sabor desses puros bafejos, que lavavam os pulmões fatigados de
uma respiração árida e miasmática. Os olhos se recreavam na festa campestre e matutina da
natureza fluminense, da qual as belezas de todos os climas são convivas.
Subia a passo curto e repousado a ladeira de Santa Teresa, calculando a hora de minha
chegada pelo despertar de Lúcia; o meu pensamento porém abria as asas, e precedendo-me, ia
saudar a minha doce e terna amiga.
Havia oito dias que Lúcia não andava boa. A fresca e vivace expansão de saúde
desaparecera sob uma langue morbidez que a desfalecia; o seu sorriso, sempre angélico, tinha uns
laivos melancólicos, que me penavam. Às vezes a surpreendia fitando em mim um olhar ardente e
longo; então ela voltava o rosto de confusa, enrubescendo. Tudo isto me inquietava; atribuindo a
sua mudança a algum pesar oculto, a tinha interrogado, suplicando-lhe que me confiasse as mágoas
que a afligiam.
— Não digas isso, Paulo! respondia com um tom de queixa. Posso ter pesares junto de ti?
É uma ligeira indisposição; há de passar.
De bem longe avistei Lúcia que me esperava e me fez um aceno de impaciência; apressei o
passo para alcançar o portão do jardim. Ela estendeu-me as mãos ambas risonha e atraindo-me,
reclinou-se sobre o meu peito com um gracioso abandono. Sentamo-nos nos degraus da pequena
escada de pedra, e informei-me de sua saúde.
— Já estou boa. Não vês?
Realmente as rosas de suas faces viçavam; era cintilante o brilho que desferia a sua pupila
negra. Pelos lábios úmidos lentejava a onda perene de um sorriso, que orvalhava-lhe o semblante de
luz e graça.
—Ainda bem! Já me habituaste a só achar bonito aquilo que vejo através do teu mimoso
sorriso. Agora é que eu começo a gozar desta linda manhã.
Trocamos ainda algumas palavras.
De repente Lúcia atirou-se a mim. Com uma arrebatada veemência esmagou na minha
boca os lábios túrgidos, como se os prurisse fome de beijos que a devorava. Mas desprendeu-se
logo dos meus braços, e fugiu veloz, ardendo em rubor, sorvendo num soluço o seu último beijo.
Fugiu, e ao passar fechou a porta que comunicava com o interior.
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Contrariado por este obstáculo, consolei a minha impaciência com o sabor da esperança
que se insinuara no meu coração. A fúria amorosa dos primeiros tempos, recalcada por uma força
misteriosa, despertava. Outra vez a febre voluptuosa nos arrebataria para abrir-nos a mansão do
prazer e dos mágicos deleites.
A minha esperança afagava-me tanto mais risonha, quanto desde o momento cruel em que
vira Lúcia quase morta nos meus braços, nunca mais a ponta mimosa do seu lábio roçara sequer
pelo meu, ávido de carícias. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe bafejava-me a
fronte; e isso mesmo depois de ter-me cerrado as pálpebras com a mão, para que eu não visse arder
o lacre de suas faces.
A porta abriu-se enfim.
Lúcia apareceu trazendo a irmã pela mão. Sua fisionomia e atitude reslumbravam já a casta
serenidade, que obrigava quantos a cercavam agora, a uma doce e terna veneração. Procurei
debalde, sob essa calma aparência, um vestígio das emoções recentes; a tranqüilidade vinha do
íntimo, exalava dos seios d'alma, e difundia-se brandamente por toda a sua pessoa. Julgaria que
nada tinha passado, se as lágrimas já estanques não houvessem empanado a habitual limpidez de
seu olhar.
Ana adiantou-se para mim, e dando-me a mão como costumava, apresentou rubescente a
fronte pura e angélica. Admirado não sabia o que fizesse, quando por cima da loura cabeça da
menina vi o gesto imperativo de Lúcia. Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos que
ondulavam com o sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento intimo; e banhou-se na
onda de púrpura que descendo-lhe da fronte, derramou-se pelas espáduas, roseando a branca
escumilha.
— É assim que se deve dizer adeus quando se quer bem! exclamou Lúcia, abraçando a
irmã.
Partimos para a missa, como de costume. Lúcia e a irmã com os braços enlaçados, eu a
alguma distância, passando por desconhecidos que seguiam o mesmo caminho. Mas de longe
mesmo, um olhar rápido trocado a furto, um gesto imperceptível, nos aproximava um do outro no
meio da multidão.
Ambas trajavam de preto, com véus espessos; elas sentiam quanto é tocante o uso de só
penetrar na casa de Deus ocultando a beleza sob a gala triste e grave, que prepara o espírito para o
santo recolho.
De volta da missa, tomaram de novo as suas alvas roupas de casa, e vieram sentar-se junto
de mim; porém Lúcia que costumava ficar entre nós, trocou o lugar com a irmã. Toda a nossa vida
era tão igual, e sucedia-se com tal regularidade, que essa circunstância não me podia escapar.
Apesar da separação, em que não tinha de todo perdido a minha fagueira esperança,
aproveitava o momento em que a menina voltava o rosto, para suplicar Lúcia com um gesto; ela
respondeu com um olhar de tão fria severidade que gelou-me.
— Ana, vai mandar deitar o almoço. Paulo hoje acordou muito cedo!
Acompanhou com os olhos a irmã até que ela desapareceu no fundo do corredor; e
voltou-se para mim séria e recolhida:
108
— Foi uma loucura! Esqueçamos esse momento, Paulo.
— Se tivesses verdadeira afeição a teu amigo, Maria, não o tratarias com tanta severidade!
— Paulo! Paulo... Tu bem sabes que com esta palavra me farias cometer crimes, se crimes
fossem necessários para te provar que eu só vivo da vida que me dás, e me podes tirar com um
sopro. Não sou eu criatura tua? Não renasci pela luz que derramaste em minha alma? Não és meu
senhor, meu artista, meu pai e meu criador?
Fez-me um gesto para que não a interrompesse.
— Tu podes me fazer voltar à treva de que me arrancaste; podes estancar as fontes de
minha existência que manam de tua alma; e não me hás de ouvir uma só queixa. A dor, como a
alegria, serão sempre benditas, porque virão de ti. Mas, Paulo, a súplica do humilde não ofende.
Deus a permite e exalça. Não me retires a graça e a bênção que me deste! Salva-me, Paulo!
Salva-me de ti. Salva-me de mim mesma!...
Deixou-se cair a meus pés, e sua voz espedaçou-se num grito pungente:
— De mim que não terei forças para resistir, se a tua coragem me não exaltar.
Ergui-a, fazendo-a sentar nos meus joelhos. Ela deixou-se atrair, com meiga confiança. Seu
instinto sutil lhe dizia que não devia temer naquele momento; adivinhava o respeito e a unção de
que minha alma a envolvia, santificando-a.
— Maria, minha amiga, sossega! Se for preciso, eu terei força por nós ambos. Perdoa-me,
porque te ofendi; não soube resistir. Não sucederá mais nunca, eu te prometo! Recobra o teu sorriso
celeste, que me purifica!
Lúcia sorriu; nesse sorriso banhou-se minha alma e eu a senti melhor e mais pura.
—Tu és bom, como Deus, que me deu a ti, Paulo, para não esperdiçar as sobras de tua
alma. Tu deves ler dentro de mim, e compreender o que eu não sei dizer, o que não sei nem mesmo
pensar. A vida como tu ma fizeste é a bem-aventurança, porque vivo já no céu. Entre nós ambos
nada existe; tu me absorves em ti, somos um: em torno de nós só Deus que nos protege, que nos
une, e envolve-nos com um único de seus olhares. Tu, Paulo, tu podes tocar a terra sem quebrar essa
coesão de nossas almas; porque sou uma coisa tua, uma porção de teu ser; porque te pertenço e te
sigo fatalmente; porque na terra, como no céu, longe ou perto, vivo de tua vida. Mas tua Maria, o
reflexo de tua luz e a flor de tua seiva, se ela caísse no pó, se desprenderia de ti para sempre... Como
aqueles a quem o Senhor abandona na hora extrema! Compreendes, Paulo, compreendes !
Respondi apenas com o olhar; a voz me falecia, tanto aquelas palavras tocantes de Lúcia
me comoviam.
— Se estivesses junto de mim durante aquela eternidade de vinte dias em que me deixaste
só com a minha consciência, verias que martírio foi o meu, quando eu queria erguer-me do abismo
para abrigar-me e esconder-me em ti; mas sentia a tua própria mão que me repelia e precipitava de
novo! Verias também no meu rosto quanto horror me causava a só idéia de que eu talvez trouxesse
já nas entranhas o verme que me devia roer as vísceras. Que importa que esse verme fosse gerado
do teu e do meu sangue? Ele me arrancaria uma porção deste espírito que é teu, e criaria uma vida
nova nesta carne que já morreu, e não pode ressuscitar para sentimento algum!
109
Ana veio chamar-nos para almoçar.
Saindo da mesa, dávamos habitualmente algumas voltas pelo jardim: elas colhendo flores
para os vasos, eu fumando o meu charuto. Às dez horas pouco mais ou menos entrávamos. Lúcia
levava-nos então para o seu toucador bem pobre e bem modesto, mas ainda assim encantador, como
tudo que essa mulher tocava com as pontas de seus dedos de fada ou bafejava com o seu hálito
celeste.
Então Lúcia ocupava-se em anelar os cabelos louros da irmã e a toucá-la com tanto esmero
como se a preparasse para alguma festa esplêndida; essa festa era a nossa intimidade, que Ana
alegrava com o seu sorriso e inocência. Depois de ter posto a irmã tão bonita, quanto ela caprichava
em tornar-se simples, fazia-me admirar aquela formosura infantil e gozava do prazer que nos fazia
sentir. Durante o seu trabalho, eu lia para ambas alguma página de literatura, ou falava sobre um
tema agradável.
Nesse dia porém a ordem de nossa comum existência fora perturbada. Lúcia chamou-me
para ajudá-la a pentear a irmã: fez-me sentar ao lado; deu-me a segurar um após outro os lindos
anéis que se enroscavam entre os seus dedos; e rindo e folgando afagava-me o rosto com a nuvem
desses cabelos finos e sutis, e obrigava-me a beijar as pontas. O que ela exigiria de mim que eu não
fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito?
Às duas horas costumava eu sair e fazer um passeio pelo encanamento. Esse caminho
estava tão cheio da imagem de Lúcia, que deixando-a em casa um momento, parecia-me que ela me
acompanhava, que eu sentia a pressão do seu braço no meu e a frescura embalsamada do seu hálito
na minha face; ao mais leve estremecimento das folhas supunha ouvir o rugir da seda de seu
vestido. Trazia do meu passeio alguma flor silvestre, uma borboleta, qualquer coisa, colhida em sua
intenção para dizer-lhe que me lembrara dela: eram relíquias para o seu coração.
Quando cheguei, Lúcia estava só no jardim, debaixo de uma espessa e sombria latada de
maracujás, tão absorvida em sua meditação que não me percebeu.
— Onde andava este pensamento tão longe de mim? disse-lhe sentando-me ao lado.
Sobressaltou-se, e abanou a cabeça sorrindo:
— Longe de ti?... Estava fazendo projetos para a nossa felicidade.
— Já não é ela uma realidade, Maria?
— E por isso, porque eu sei o que ela vale, receio que não dure sempre. Tu vives num
mundo, Paulo, onde há condições que serás obrigado a aceitar, cedo ou tarde; um dia sentirás a
necessidade de criar uma família, e gozar das afeições domésticas.
— Não me casarei nunca!
— Agradeço-te essa palavra; mas recuso o sacrifício. Se a tua bondade por mim não te
cegasse neste momento, me darias razão. Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma
esposa casta e pura te pode dar. Por mim te havias de privar de tão santas afeições, como são o amor
conjugal e o amor paterno?
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— Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a nossa felicidade? repliquei com um
sorriso amargo. Se essa necessidade de que falas é tão forte que ninguém se pode esquivar a ela, o
que eu contesto, nunca pensei que fosses tu que a lembrasse.
— Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me, se eu merecer, mas não retires
de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de que um dia me poderás abandonar por uma mulher a
quem deverás consagrar toda a tua vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me preocuparia
com isto? É porque temo essa desgraça, que refletia no meio único de evitá-la.
— E esse meio?... Qual é ele? Dize-me.
— Ana! respondeu Lúcia timidamente.
Não compreendi.
— Poderias escolher uma noiva rica, de alta posição, porém não acharás alma tão pura,
nem mais casto amor.
— Queres casar-me com Ana? Com tua irmã, Maria?
— Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos
que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela.
Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor. Ela será tua esposa; eu completarei todas as
outras afeições de que careces, serei tua irmã, tua filha, tua mãe!
— E podes dispor assim dos sentimentos de Ana?
— Era preciso que ela não vivesse comigo, para deixar de amar-te! Já te ama. Não sabes
então que o meu pensamento e a minha alegria têm sido formar aquela alma pelo molde da minha?
— Tudo isto é um sonho teu, minha amiga! Vivamos com a realidade; e deixemos vir um
futuro que pertence a Deus.
— Por que este sonho não se realizaria, querendo tu? Seria a consagração da minha
felicidade. Sim; não há sacrifício de minha parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso
dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo?
Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha
imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e tua
gozaria dos beijos de ambos. Que suprema delícia...
Lúcia calou-se de súbito, empalidecendo. Toda a sua pessoa assumiu-se, tomando a
expressão vaga e estática de quem é absorvido por um recolho íntimo: figurava uma pessoa
escutando-se viver interiormente. Até que ergueu-se espavorida; soltou um gemido pungente
levando a mão ao regaço, e caiu fulminada em meus braços.
O abalo interior que sofrera esse corpo delicado fora tão forte, que a cintura do vestido se
despedaçara.
Conduzi Lúcia ao seu leito, e só depois de cruéis angústias tive o consolo de vê-la recobrar
os sentidos, mas para cair logo numa prostração, em que apesar dos meus rogos e instâncias, só a
ouvia murmurar surdamente estas palavras incompreensíveis:
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— Eu adivinhava que ele me levaria consigo!
— Ele quem, minha boa Maria?
— O teu, o nosso filho! respondeu-me ela.
— Como! Julgas?...
— Senti há pouco o seu primeiro e o seu último movimento!
— Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás mãe,
minha querida Maria? Terás mais esse doce sentimento da maternidade para encher-te o coração;
terás mais uma criatura com quem repartir a riqueza inexaurível de tua alma!
— Cala-te, Paulo! Ele morreu! disse-me com a voz surda. E fui eu que o matei!
— Para que te afliges assim! Nosso filho vive, há de viver! Não sentiste há pouco o seu
primeiro movimento!
Nisto chegou o médico a quem tinha escrito imediatamente, e que depois de examinar o
estado de Lúcia, declarou que não inspirava receio. Ela estava ameaçada de um aborto, resultado do
choque violento que sofrera, quando conheceu que se achava grávida. O doutor, um dos mais hábeis
parteiros da corte, procurou desvanecer os receios de Lúcia, assegurando-lhe que seu filho vivia, e
nada ainda fazia recear pela sua vida.
Apenas o médico saiu, ela olhou-me tristemente:
— Era o primeiro! Mas o tato das entranhas maternas, sejam elas virgens ainda, não
engana. Nosso filho, Paulo, o teu, porque ele era mais teu do que meu, já não existe.
À noite declarou-se a febre; uma febre intensa que a fez delirar. Foi então que conheci
quanto eu vivia no seu pensamento: ela não disse no delírio uma só palavra que não se referisse a
mim e a alguma circunstância de nossa vida mútua, desde o primeiro dia em que nos encontramos.
Pela manhã, depois de um sono curto e agitado, achei-a mais tranqüila:
— Tu me prometes, Paulo, casar com Ana!
— Não tratemos disso agora, minha amiga! Quando ficares boa, tudo o que tu quiseres eu
farei para a tua felicidade.
— Mas essa promessa me daria tanto agora!
Escuta, Maria, esse casamento nos tornaria infelizes a ti, a tua irmã, e a mim que não
poderia amá-la, mesmo por causa dessa semelhança! Tu viverias sempre entre mim e ela!
— Pois bem, promete-me que se ela não for tua mulher, lhe servirás de pai.
— Juro-te!
Beijou-me as mãos:
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— Ela vai ter tanta necessidade de um pai!
Os acessos de febre repetiram-se durante três dias, e sempre mais graves. Uma tarde em
que o médico apresentou a Lúcia um remédio:
— Para que é isso? perguntou ela com brandura.
— Para aliviá-la do seu incômodo. Logo que lançar o aborto, ficará inteiramente boa.
— Lançar!... Expelir meu filho de mim?
E o copo que Lúcia sustentava na mão trêmula, impelido com violência, voou pelo
aposento e espedaçou-se de encontro à parede.
— Iremos juntos!... murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito. Sua mãe lhe
servirá de túmulo.
De joelhos à cabeceira eu suplicava-lhe que bebesse o remédio que a devia salvar.
— Queres acompanhar teu filho, Maria, e abandonar-me só neste mundo. Vive por mim!
— Se eu pudesse viver, haveria forças que me separassem de ti? Haveria sacrifício que eu
não fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a
vida me foge!
A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que nenhum efeito produziu. A febre
lavrava com intensidade; eu já não tinha esperanças.
— O remédio de que eu preciso é o da religião. Quero confessar-me, Paulo.
Lúcia tomou os sacramentos com uma resignação angélica; e abraçando a irmã, disse-lhe:
— Perdes uma irmã, Ana; fica-te um pai. Ama-o por ele, por ti e por mim
O dia se passou na cruel agonia que só compreendem aqueles que ajoelhados à borda de
um leito viram finar-se gradualmente uma vida querida.
Quebrado de fadiga e vencido por uma vigília de tantas noites, tinha insensivelmente
adormecido, sentado como estava à beira da cama, com os lábios sobre a mão gelada de Lúcia e a
testa apoiada no recosto do leito. O sono foi curto, povoado de sonhos horríveis; acordei
sobressaltado e achei-me reclinado sobre o peito de Lúcia, que se sentara de encontro às almofadas
para suster minha cabeça ao colo, como faria uma terna mãe com seu filho.
Mesmo adormecido ela me sorria, me falava, e cobria-me de beijos:
— Se soubesses que gozo supremo é para mim beijar-te neste momento! Agora que o
corpo já está morto e a carne álgida, não sente nem a dor nem o prazer, é a minha alma só que te
beija, que se une à tua e se desprende parcela por parcela para se embeber em teu seio.
E seus lábios ávidos devoravam-me o rosto de carícias, bebendo o pranto que corria
abundante de meus olhos:
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— Se alguma coisa me pudesse salvar ainda, seria esse bálsamo celeste, meu amigo!
Eu soluçava como uma criança.
— Beija-me também, Paulo. Beija-me como beijarás um dia tua noiva! Oh! agora posso te
confessar sem receio. Nesta hora não se mente. Eu te amei desde o momento em que te vi! Eu te
amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta
por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com
todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade.
A voz desfaleceu completamente, de extenuada que ela ficara por esse enérgico esforço.
Eu chorava de bruços sobre o travesseiro, e as suas palavras suspiravam docemente em minha alma,
como as dulias dos anjos devem ressoar aos espíritos celestes.
— Nunca te disse que te amava, Paulo!
— Mas eu sabia, e era feliz!
— Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu
primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do
Criador. Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia
profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro.
Lúcia pediu-me que abrisse a janela: era noite já; do leito víamos uma zona de azul na qual
brilhava límpida e serena a estrela da tarde. Um sorriso pálido desfolhou-se ainda nos lábios sem
cores: sublime êxtase iluminou a suave transparência de seu rosto. A beleza imaterial dos anjos
deve ter aquela divina limpidez.
— Recebe-me... Paulo!...
Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de minhas lágrimas.
Relendo-o, admirei como tivera a coragem de alguma vez, no correr desta história, deixar a
minha pena rir e brincar, quando o meu coração estava ainda cheio da saudade, que sepultou-se nele
para sempre.
É porque, repassando na memória essa melhor porção de minha vida, alheio-me tanto do
presente que revivo hora por hora aqueles dias de ventura, como de primeiro os vivo, ignorando o
futuro, e entregue todo às emoções que sentia outrora. Quando eu gracejava, Lúcia estava ainda ao
meu lado; ainda eu era feliz da minha lembrada felicidade.
Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará
eternamente. Tenho-a tão viva e presente no meu coração, como se ainda a visse reclinar-se meiga
para mim. Há dias no ano e horas no dia que ela sagrou com a sua memória, e lhe pertencem
exclusivamente. Onde quer que eu esteja, a sua alma me reclama e atrai; é forçoso então que ela
viva em mim. Há também lugares e objetos onde vagam seus espíritos; não os posso ver sem que o
seu amor me envolva como uma luz celeste.
Ana casou-se há dois anos. Vive feliz com seu marido, que a ama como ela merece. É um
anjo de bondade; e a juventude realçando-lhe as graças infantis, aumentou a sua semelhança com a
irmã; porém falta-lhe aquela irradiação íntima de fogo divino. Almas como as de Lúcia, Deus não
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as dá duas vezes à mesma família, nem as cria aos pares, mas isoladas como os grandes astros
destinados a esclarecer uma esfera.
Cumpri a vontade de minha Lúcia; tenho servido de pai a essa menina; com a sua
felicidade paguei um óbolo de minha gratidão à doce amiga que tanto amou-me.
Estas páginas foram escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas toda a minha alma
para lhe transmitir um perfume da mulher sublime, que passou na minha vida como sonho fugace.
Creio que não o consegui; por isso fecho aqui alguns fios da trança de cabelos, que cortei no
momento de dizer o último adeus à sua imagem querida.
Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso, que comunica com o
nosso espírito. A senhora há de amar Lúcia, tenho a certeza; talvez pois aquela relíquia, ainda
impregnada de seiva e fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não pude exprimir.

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